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PolíticaItália

Italianos contestam premiê Meloni por corte de renda cidadã

Rosie Birchard | Marta Vigano | Augusto Valente
4 de agosto de 2023

Reforma radical na seguridade social e contração econômica prenunciam outono turbulento para líder ultradireitista, apesar de sua relativa credibilidade internacional.

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Chefe de governo da Itália Giorgia Meloni
Giorgia Meloni integra partido de ultradireita Irmãos da ItáliaFoto: Virginia Mayo/dpa/picture alliance

Quando julho de 2023 chegou ao fim, cerca de 169 mil cidadãs e cidadãos da Itália ficaram sabendo que não mais receberiam benefícios previdenciários. Para muitos, a notícia do corte sumário do reddito di cittadinanza chegou por um simples SMS – um método que atingidos, oposicionistas e parte da imprensa classificaram como "brutal" e "de arrepiar".

Nesta segunda-feira (31/07), numerosos cidadãos tomaram as ruas de Nápoles em protesto. À emissora estatal RAI, um manifestante tachou a chefe de governo Giorgia Meloni de "Robin Hood ao contrário": ela está "tirando dos pobres e dando para os ricos".

Por maior a ira popular que tenham causado, os cortes não vieram como uma surpresa: em sua campanha eleitoral, Meloni e seu partido Irmãos da Itália (FdI), de ultradireita, prometeram restringir as benesses sociais. Agora estão transformando suas palavras em ações.

O reddito di cittadinanza (renda cidadã), um programa de subsídio básico para famílias de baixa renda instituído em 2019, será substituído por dois outros esquemas um tanto mais restritivos.

A meta, como enfatizou Meloni ao anunciar a reforma no fim de outubro, é "transformar assistência social em trabalho". A premissa de seu governo é que o subsídio foi ineficaz, pois a maioria dos beneficiários não encontrou trabalho.

"Nós estabelecemos o princípio de que o Estado vai cuidar de alguns italianos para sempre", comentou a líder ultradireitista numa coletiva de imprensa em 2022. "Acredito que o Estado deveria é cuidar de ajudá-los a encontrar emprego e a melhorar suas condições, em vez de mantê-los na mesma situação."

Alguns grupos de negócios também fizeram lobby declarado em favor da reforma, argumentando que os pagamentos mensais eram um desincentivo à procura de atividade profissional remunerada.

Manifestação em Nápoles contra o corte da renda cidadã na Itália
Manifestação em Nápoles contra o corte da renda cidadãFoto: Antonio Balasco/IMAGO

No entanto a primeira-ministra Meloni se encontra agora sob pressão adicional para provar a viabilidade de suas ideias, num momento em que as projeções indicam uma inesperada desaceleração econômica. Seu antecessor à frente do governo, Giuseppe Conte, acusa-a de estar orquestrando "um desastre social e econômico".

Para o analista Francesco Corti, do think tank Centre for European Policy Studies (Ceps), sediado em Bruxelas, o novo plano de restringir os benefícios constitui uma "mudança de paradigma" em relação a uma abordagem mais universal: "A ideia é que se pode traçar uma linha entre os cidadãos empregáveis e não empregáveis."

Aprofundando o abismo norte-sul

Segundo o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) da Itália, cerca de 1,7 milhão de famílias de baixa renda receberam em 2022 uma renda cidadã de 550 euros mensais, em média. O governo não impôs limites de tempo à concessão do subsídio, contanto que não se recusassem eventuais ofertas de emprego.

Sob o esquema atual, aqueles considerados fisicamente capazes de trabalhar receberão apenas 350 euros por mês durante um ano, no máximo, sob a condição de se inscreverem em cursos de treinamento. A mudança foi antecedida de debates acalorados, com acusações de fraude e preguiça sendo lançadas contra os beneficiários, muitos dos quais vivem no menos próspero sul da Itália.

Segundo a rede oficial da União Europeia de serviços de emprego Eures, o mercado de trabalho italiano "difere amplamente" de acordo com a geografia: "A atividade industrial está principalmente concentrada no norte, enquanto a população das regiões meridionais trabalha mais na agricultura e turismo."

Tais diferenças se traduzem em desigualdade. A região setentrional da Lombardia, cuja capital é o polo financeiro Milão, registrou em 2022 uma taxa de desemprego de 4,9%, semelhante aos 5,7% da Alemanha. Já na Sicília, ela foi de 16,6%, e até de 17,1% na Campânia, região onde se situa Nápoles.

A situação é ainda mais dramática para os meridionais abaixo dos 29 anos de idade, um terço dos quais foi classificado como desempregado em 2022. Em nível nacional, contudo, o nível de desemprego está em queda.

A politóloga Paola Mattei, de Milão, expressa receio de que as novas políticas governamentais estejam passando por cima dos desafios históricos representados pelo profundo abismo norte-sul que divide a nação.

"Acho que a visão ideológica deles é que pobreza é mesmo uma escolha, acima de tudo; e se você é jovem, apto, saudável, vai encontrar um emprego. Sabemos que isso não se aplica a certas partes do país. Existem áreas da Itália em que não é uma questão de escolha: não importa quão preparado você seja, não vai encontar emprego, porque lá não há indústria nem demanda de mão de obra."

Cabe lembrar que, fiéis às origens históricas do movimento fascista, no início do século 20, o Irmãos da Itália e outras legendas italianas no espectro do populismo de direita ao neofascismo – como o Força Itália e a Liga – têm raízes profundas no norte do país.

Credibilidade internacional não garante estabilidade a Meloni

Os beneficiários da renda cidadã não foram os únicos italianos a receberem más notícias na primeira semana de agosto: os economistas já haviam previsto crescimento zero para a economia do país para o segundo trimestre de 2023, mas dados divulgados na segunda-feira revelaram uma queda de 0,3%.

Por sua vez, a União Europeia como um todo cresceu nessa mesma proporção. Falando à agência de notícias italina AGI, o depuado Ubaldo Pagano, do Partido Democrático (PD), de centro-esquerda, não hesitou em acusar os detentores do poder de má gestão.

"Se depois de dois anos de crescimento sólido e sustentado, nós caímos para os últimos lugares do ranking da UE – pior do que a Alemanha, França e Espanha – é sem dúvida por causa das escolhas feitas nos últimos meses."

 Giorgia Meloni e Joe Biden na Casa Branca
Com Joe Biden na Casa Branca: Itália ultradireitista e EUA democrata em perfeita harmonia?Foto: Yuri Gripas/ABACAPRESS/IMAGO

Nas taxas de aprovação popular, o governo Meloni registrou em julho uma perda de três pontos percentuais, caindo para 49%, segundo o instituto Ipsos. Consultas agregadas pelo site de notícias Politico indicaram que, enquanto o ultradireitista FdI de Meloni se mantém em 29% desde janeiro, o apoio ao oposicionista PD saltou de 16% para 20%, nesse período.

Por sua vez, a própria Meloni manteve popularidade em torno de 52%, de janeiro a julho. Paola Mattei crê que certos eventos recentes têm preservado a imagem política da líder, entre eles a liberação de uma nova parcela dos fundos de resgate da UE para a Itália, ou sua visita a Washington, onde foi bem recebida pelo presidente Joe Biden.

"Num momento em que a economia está desacelerando, em que medidas antipobreza recebem reformas significativas, ela resolve fortalecer sua credibilidade internacional", comenta a cientista política, prevendo que os próximos meses poderão ser difíceis para a política de extrema direita.

"Vamos ver mais turbulência social no outono. Os sindicatos já anunciaram um 'outono quente' de protestos. Portanto eu acho que a realidade local pode ser bem diferente da credibilidade internacional que ela conseguiu – com sucesso, penso eu – estabelecer com Washington."