1. Pular para o conteúdo
  2. Pular para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW

Llosa: "Escritores têm de dar contribuição à política"

Eduardo Méndez (pv)14 de abril de 2015

O mundo se despediu, no mesmo dia, de dois ícones da literatura politicamente engajados: Günter Grass e Eduardo Galeano. Em entrevista à DW, o autor peruano Mario Vargas Llosa analisa o legado deixado por ambos.

https://p.dw.com/p/1F8X0
Foto: AFP/Getty Images/A.-C. Poujoulat

A Europa e a América Latina sofreram grandes perdas nesta segunda-feira (13/04), com a morte dos escritores Günter Grass e Eduardo Galeano, ícones da literatura contemporânea.

Ambos eram engajados politicamente. Enquanto o alemão se tornou uma espécie de instância moral com relatos sobre os dramas vividos na Segunda Guerra e debates políticos na Alemanha, o uruguaio se tornou a voz dos oprimidos na América Latina.

Para outro ícone da atual literatura mundial, o peruano Mario Vargas Llosa, o alemão Grass foi um dos escritores mais importantes do século 20. "Günter Grass foi um modelo de escritor que infelizmente está desaparecendo. Ao mesmo tempo em que desenvolvia uma obra criativa, ele foi um escritor comprometido, que participou muito ativamente do debate público e das atividades cívicas", disse Llosa, em entrevista exclusiva à DW.

Llosa, que, assim como Grass, também foi agraciado com o Nobel de Literatura, enalteceu o empenho do alemão em defender suas posições políticas em seu país, mas lembrou também um desentendimento que teve com o escritor alemão. "Günter Grass, infelizmente, representava muito a visão de dois pesos e duas medidas de muitos intelectuais europeus: para a Europa, a democracia, a civilização, mas para a América Latina, a utopia, guerrilheiros, bombas, guerra civil, revolução."

Já as divergências políticas com Galeano foram maiores. "Nós estávamos, por assim dizer, em polos distintos, o que não me impede de reconhecer que ele tinha uma formação intelectual de muito alto nível", comentou Llosa.

Deutsche Welle: Como o senhor recebeu a notícia das mortes de Günter Grass e Eduardo Galeano?

Mario Vargas Llosa: Com muito pesar, porque se trata de dois escritores importantes. Acredito que Günter Grass, que foi novelista, ensaísta e artista, é um dos grandes escritores do século 20. Sobretudo temos que recordar o romance O tambor, com o qual ele se tornou famoso, que acredito ser um dos grandes romances do século 20. Não somente pela riqueza de sua linguagem, mas também pelo valor simbólico da história que conta, que de alguma maneira reflete o terrível drama político e social que viveu o século 20 [Segunda Guerra Mundial]. Creio que seja um romance que mereceu a enorme popularidade que teve e, sem dúvida, deve figurar entre os romances mais importantes do século passado.

Fora isso, acho que Günter Grass foi um modelo de escritor que infelizmente está desaparecendo. Ao mesmo tempo em que desenvolvia uma obra criativa, ele foi um escritor comprometido, que participou muito ativamente do debate público e das atividades cívicas. Acredito que atualmente haja esse tipo de escritor com cada vez menos frequência. Infelizmente, porque acredito que os escritores têm de contribuir para a vida política, tanto na linguagem como no campo da imaginação, da fantasia, que deveria ser um ingrediente importante na vida política.

Neueröffnung Günter Grass-Haus Lübeck
"Acredito que Günter Grass seja um dos grandes escritores do século 20", enaltece LlosaFoto: picture-alliance/dpa/Gambarini

No caso de Eduardo Galeano, bem, ele foi sobretudo um ensaísta. Meus pontos de vista políticos são muito diferentes dos de Galeano. Nós estávamos, por assim dizer, em polos distintos, o que não me impede de reconhecer que ele tinha uma formação intelectual de muito alto nível. Foi, aliás, magnífico diretor de duas importantes revistas culturais.

Creio que suas teses sobre a América Latina estavam completamente equivocadas. O livro que o fez ficar famoso e que foi difundido mundo afora, As veias abertas das América Latina, apresenta uma descrição completamente caricatural de um, digamos, dogmatismo marxista, que torna caricata e falsifica profundamente a realidade da América Latina.

Porém, creio que devemos reconhecer em Galeano também um talento literário, uma qualidade intelectual e também a sua participação voluntária na vida cívica, na vida política de nosso tempo. Algo que, infelizmente, vem sendo cada vez menos frequente, sobretudo nas gerações mais jovens de escritores.

Em contextos diferentes, ambos escritores foram politicamente ativos. No caso de Grass, houve polêmica por seu ativismo político. Esse compromisso de Grass te incomodou?

Não, pelo contrário. Ele defendeu umas posições em seu país que me pareceram sempre muito respeitáveis. Ele enfrentou a extrema esquerda e os comunistas, porque acreditava na democracia. Ele defendeu a social-democracia, defendeu o partido socialista alemão, um partido democrático.

Minha polêmica com ele foi porque ele disse que os latino-americanos deveriam seguir o exemplo de Cuba, então, eu respondi dizendo que havia uma enorme contradição em defender a democracia para a Alemanha e defender o comunismo para os latino-americanos. Por quê? Qual é a diferença fundamental entre os latino-americanos, pela qual devemos sofrer ditaduras comunistas, e os europeus, para que esses possam viver democracias multipartidárias, com liberdade de expressão, com respeito aos direitos humanos? Essa foi a razão para o nosso desentendimento.

Uruguayischer Schriftsteller und Intellektueller Eduardo Galeano
Llosa sobre Galeano:"Suas teses sobre a América Latina estavam completamente equivocadas e apresentam um dogmatismo marxista que falsifica a realidade"Foto: picture-alliance/dpa/I. Franco

Nesse ponto, acho que Günter Grass, infelizmente, representava muito a visão de dois pesos e duas medidas de muitos intelectuais europeus: para a Europa, a democracia, a civilização, mas para a América Latina, a utopia, guerrilheiros, bombas, guerra civil, revolução. Essa visão completamente romântica e antiquada tem prejudicado muito a América Latina. Muitos europeus incorporaram essa visão mítica e realmente profundamente falsa do que é a realidade latino-americana.

Essa foi a razão para a controvérsia que tivemos, mas a polêmica não interrompeu a nossa amizade. A verdade é que fomos amigos até o fim e, cada vez que nos vimos, tivemos uma relação não apenas cordial, mas às vezes bem divertida.

De forma sucinta: quão grande é a perda para a literatura?

Acho que o trabalho de Grass é um trabalho sólido, que inspirará uma série de romances no futuro. Principalmente O tambor, que classifico como um grande romance, assim como Anos de cão, outro romance que creio que está entre os melhores.

E depois, há romances que foram tentativas interessantes, porém, digamos, falhas. Ele escreveu vários romances que eram muito audaciosos como tentativa, mas acredito que não como realização. Estou pensando, por exemplo, em O pregado, que é um romance no qual ele trabalhou duro e que, no entanto, acho que não deu certo, que é muito mais prolixo do que bem-sucedido. Mas o interessante é que ele se arriscou, não é verdade?

Ele escrevia coisas ousadas, queria renovar o gênero não só de forma temática, mas também estilística e estrutural. E depois, há os depoimentos autobiográficos, que são muito interessantes, porque expressam a sua época. Sem dúvida, Günter Grass será lembrado como um dos importantes escritores de nossa era.