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Quarenta anos após a morte de Amílcar Cabral

Helena Ferro de Gouveia11 de maio de 2013

Depois da morte física do poeta e “Chefi di Guerra” que cunhou a história da Guiné e Cabo Verde lutando contra o colonialismo português, o cabralismo sofreu muitas mortes. Ficou alguma coisa do seu sonho?

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Foto: AFP/Getty Images

"Amílcar Cabral foi em meu entender o mais inteligente, o mais criativo e o mais brilhante de todos os dirigentes da luta de libertação dos povos africanos colonizados naquela altura pelo regime português", afirma Manuel Alegre. O poeta, político português Manuel Alegre recorda-se de um dia em Argel, onde o português estava exilado, Amílcar Cabral ter puxado os óculos para a testa, como era seu hábito, e com os olhos rasos de lágrimas ter dito: “Quando for assassinado, sê-lo-ei por um homem do meu povo, do meu partido, provavelmente fundador, ainda que guiado pelo inimigo”. Cabral pressentia o perigo e presságio confirmou-se. Foi assassinado, aos 48 anos, por três homens armados do PAIGC, o seu partido, pertoda sua casa em Conacri.

Até hoje as circunstâncias da morte estão por esclarecer. Inocêncio Kani, companheiro de luta de Cabral deu o primeiro tiro, outro, ainda não identificado, deu-lhe os tiros de misericórdia. Também não há uma verdade quanto à autoria moral do crime: um plano da PIDE, a polícia política portuguesa? Divergência no seio do partido? Conflito de interesses na Guiné-Conacri? Morrer é uma das condições da guerra de qualquer combatente. Amílcar Cabral era um alvo privilegiado, pela sua acção, mas sobretudo pelo seu pensamento.

No seu livro de memórias, “A Ponta da Navalha”, o jornalista francês Gérard Chaliand, que acompanhou e divulgou a Luta de Libertação na Guiné-Bissau, conta que quando disseram a Nelson Mandela “tu és o maior”, Mandela replicou com toda a simplicidade, “não o maior é Cabral”. Manuel Alegre salienta que Cabral foi asssassinado, “porque não tinha consigo nenhuma arma, ele que era o principal teórico da luta armada africana de libertação”. Foi a primeira morte de Cabral.

"Aprendi que não era português"

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Retrato de Amílcar Cabral na sede do PAIGC em BissauFoto: DW

À uma hora do dia 12 de Setembro de 1924 nascia em Bafatá, na então Guiné Portuguesa, Amílcar Lopes Cabral. Filho de um professor primário cabo-verdiano e de mãe guineense. Aos 8 anos de idade muda-se com a família para a ilha de Santiago, Cabo Verde. Frequentou o liceu Gil Eanes, em S. Vicente, onde completa, em 1944, os seus estudos secundários. Recordando os seus tempos de escola Cabral dirá: “Gosto muito de Portugal, do povo português. Houve um tempo na minha vida em que eu estive convencido que era português. Mas depois aprendi que não, porque o meu povo, a história de África, até a cor da minha pele…Aprendi que já não era português”.

Amílcar tem 15 anos quando se inicia a Segunda Guerra Mundial que terá impactos dramáticos em Cabo Verde. Nos anos quarenta Cabo Verde era uma colónia varrida pela fome e pela morte. A fome, que vitimou dezenas de milhar de pessoas, inspirou Cabral a escrever o seu primeiro conto, “Fidemar”. Neste conto revelava o desejo de partir e voltar para libertar o seu pais. A história acabava de forma trágica com o salvador da pátria a morrer afogado numa batalha naval.

Não apenas a escrita e as preocupações sociais ocupavam o jovem Cabral. Amante de Futebol, em S. Vicente, Amílcar foi secretário do “Boavista Futebol Clube” entre 1944-45. Manuel Alegre recorda: “Ele era um homem com um grande sentido de humor, ele dizia que o seu desejo maior era ter sido ponta esquerda do Benfica ou chefe de uma orquestra do morro, mas que as circunstâncias o tinham transformado enfim no dirigente da luta armada”.

Chegada a Lisboa num momento turbulento

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Sede do PAIGC em BissauFoto: DW

Após terminar o liceu em São Vicente, Amílcar Cabral obtém uma bolsa de estudo da Casa dos Estudantes do Império e inicia os seus estudos universitários em Lisboa no Instituto Superior de Agronomia.

A guerra tinha acabado pouco antes na Europa quando Cabral, então com 21 anos, desembarcou no Cais de Alcântara no Outono de 1945. O Portugal ao qual o jovem africano chega atravessa um momento de agitação sócio-laboral sem precedentes no Estado Novo. A derrota do nazismo alimenta as esperanças da oposição portuguesa de que ventos de mudança cheguem ao país.

No Instituto de Agronomia distingue-se como aluno e jogador exímio de futebol. O Benfica chegaria a convidá-lo para jogar no clube. Nos tempos livres o jovem caloiro dá aulas nocturnas de alfabetização aos operários de Alcântara.

"Lutei pela Pátria portuguesa sem ser português"

Amilcar Cabral
Amílcar Cabral em Cuba em Agosto de 1970Foto: AFP/Getty Images

Os interesses do jovem Cabral iam muito para além da Agronomia e do futebol. Nos seus anos em Lisboa destaca-se pelas actividades políticas e culturais desenvolvidas na Casa de África, na Casa dos Estudantes do Império - da qual foi vice-presidente entre 1950 e 1951- e no Centro de Estudos Africanos. Cabral dirá: “Eu fui fiel à Pátria portuguesa lutando ao lado do povo português contra o salazarismo. Cantando nas ruas de Lisboa, abrindo brechas entre a polícia, na Rua Augusta, aquando da eleição de Humberto Delgado. “Lutei pela Pátria portuguesa sem ser português.”

Apresenta a tese de final de curso, em 1952, sobre a erosão dos solos agrícolas, a partir de uma investigação no concelho de Cuba (no Alentejo). Nesse mesmo ano regressa à Guiné, assumindo o cargo de Director do Posto Agrícola Experimental de Pessubé, em Bissau.

Enquanto procede, acompanhado pela mulher, ao recenseamento agrícola da Guiné, Cabral já adquirira uma longa aprendizagem sobre o que faziam as organizações nacionalistas e cívicas de Angola, já se relacionara com Lúcio Lara, Mário de Alcântara Monteiro e Viriato da Cruz, entre outros. Dirá mais tarde que a sua ida para a Guiné tinha sido programada já com a ideia de fazer alguma coisa, de dar uma contribuição para levantar o povo contra os tugas. Amílcar Cabral sabia muito pouco sobre a Guiné, foi o recenseamento agrícola que lhe deu a conhecer em grande profundidade a realidade local: 99.7% da população não gozava na plenitude dos direitos civis e políticos.

Face ao seu envolvimento nos movimentos anti-colonialistas em 1955 é aconselhado a abandonar a Guiné. Regressa à metrópole e até final de 1959, reside em Lisboa, desempenhando contudo um conjunto de actividades em Angola, nomeadamente participando na formação do MPLA.

Nasce o PAIGC

Quarenta anos após a morte de Amílcar Cabral o que resta do seu sonho africano?

Numa visita à capital guineense a 19 de Setembro de 1956, propõe a formação do Partido Africano da Independência (PAI), que esteve na génese do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), uma organização de luta que se propunha libertar os dois povos do colonialismo português. Agindo na clandestinidade durante os 3 primeiros anos da sua existência, o PAIGC teve um papel de destaque na organização da greve nas docas do cais de Pidjiguiti, em 1959. A repressão violenta dos trabalhadores portuários pela PIDE, a polícia política portuguesa, será o momento que decidiu o início da luta armada.

A 23 de Janeiro de 1963, após uma série de propostas de conversações apresentadas ao Governo Português e através da ONU, desencadeia a sul do território, a luta armada de libertação nacional. Numa entrevista à televisão francesa, concedida em Conacri, Cabral explica o porquê da independência “A independência para quê?’ Sim, a independência para quê? Para nós, em primeiro lugar, para sermos nós próprios. Para sermos homens africanos, com tudo o que nos caracteriza, mas caminhando para uma vida melhor, e que nos identifique, cada vez mais, com os outros homens no Mundo.Salazar dizia que a África não existe sem os Europeus. É um exagero. Nós consideramos que a nossa independência permitirá desenvolver a nossa cultura, desenvolver-nos a nós mesmos e ao nosso país.Levando o nosso povo a sair da miséria, do sofrimento, da ignorância, porque este é o estado onde nos encontramos após 500 anos de presença portuguesa”.

A guerra iniciada em 1963 com o ataque ao quartel de Tite avançou rapidamente até 1967, mas depois há um impasse. Nessa altura ele procura obter um estatuto jurídico internacional que permita ao país ser reconhecido.Cabral tem clara noção da importância da frente diplomática, por isso desdobra-se em viagens à procura de apoios, militares, financeiros ou humanitários: Conseguiu o apoio da China, da União Soviética, de Cuba mas também de governos de países ocidentais como a Suécia, a Noruega ou a Finlândia.

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O pai da nacionalidade guineense não assistiu a independênciaFoto: picture-alliance/dpa

Com os apoios do exterior e a mobilização da população a Guine já via ao fundo a luz da independência. Marcos importantes da sua afirmação internacional são a audiência com o Papa Paulo VI em 1970 e em 1972 a sua intervenção no Conselho de Segurança reunido em Adis-Abeda, na qual realiza um apelo à ONU no sentido de enviar uma missão de visita às regiões libertadas.

Esta missão das Nações Unidas viria a realizar-se entre 2 e 8 de Abril de 1972 e contribuiu para o reconhecimento internacional do PAIGC como representante legítimo do povo da Guiné-Bissau e Cabo Verde.

Um homem de diálogo

“Foi um homem que sempre procurou negociar, foi um chefe de guerra mas nunca gostou da guerra e esteve quase a consegui-lo antes de ser assassinado e sempre foi uma homem que disse que o inimigo não era o povo português que o povo português era aliado principal do povo da Guiné e de Cabo Verde. Dizia que a luta de libertação é um acto de cultura e dizia esta coisa curiosa: na luta anticolonialista o colonizado liberta o colonizador. Isto não foi apenas uma frase porque na verdade teve consequências para a própria luta pela liberdade em Portugal. Muitos dos dirigentes que fizeram a nossa Revolução dos Cravos, muitos dos militares que depois formaram o Movimento das Forcas Armadas estiveram na Guiné e lutaram contra o PAIGC e acabariam por assimilar os princípios teórico-politicos de Cabral”.

Em Janeiro de 1973 a luta prosseguia com crescente dificuldade para as tropas portuguesas. Contam antigos guerrilheiros que Cabral gostava de acompanhar com um binóculo os combates em Madina do Boé. Fora da Guiné era um homem respeitado, reconhecido com um grande dirigente africano. Mantinha o seu repúdio pela violência, opôs-se sempre ao terrorismo e qualquer ataque contra civis, e continuava a acreditava no diálogo. Isso poderá ter ditado a sua morte. A 20 de Janeiro de 1973 face aos que pretendiam amarra-lo resistiu. “É por isso que eu luto, para que deixem de amarrar as pessoas”. Disse que preferia ser morto a ser amarrado.

Ideiais de Cabral traídos

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Sucessivos golpes militares fazem da Guiné-Bissau um Estado à beira do abismo (na foto: soldados da ECOWAS)Foto: AFP/Getty Images

O pai da Guiné-Bissau não assistiria ao seu nascimento como Nação e desde então os seus ideais têm sido muitas vezes traídos, numa multiplicidade de mortes póstumas. A escritora e antiga ministra guineense Odete Semedo salienta:“Ele dizia que a se a independência não se traduzir no bem-estar do povo, então as palavras serão vãs e hoje são palavras vãs. Nós traímos a maré como diz a canção.

A segunda morte de Amílcar Cabral ocorreu com o golpe de Estado em que Nino Vieira depôs o então presidente Luís Cabral (meio-irmão de Amílcar) e pôs fim ao grande projecto de fazer da Guiné-Bissau e de Cabo Verde um único país capaz de resistir às pressões dos vizinhos Senegal e Guiné-Conacri. Seria a primeira de muitas mortes póstumas.

Resta alguma coisa do cabralismo?

Poucas visões serão tão fantásticas e premonitórias, como a do busto mal-tratado, empoeirado, de Amílcar Cabral, de costas voltadas para a Avenida que traz o seu nome, em Bissau. Amílcar e a Guiné? Um casal irreconciliável. Sucessivos políticos e militares, não há nada mais volátil que heróis quando acaba a guerra, traíram Cabral e os guineenses.

“Não se cumpriu [o cabralismo] na Guiné que é hoje um estado em vias de falhar, mas cumpriu-se em Cabo Verde onde estão os seus principais discípulos. Cabo Verde é hoje um exemplo de democracia para toda a África.”

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