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Sul-coreanos questionam "preço do crescimento"

Esther Felden (ca)18 de maio de 2014

Tristeza, raiva e questionamentos torturantes: um mês após o naufrágio da balsa Sewol, o acidente continua sendo o principal tema na Coreia do Sul: uma tragédia que mudou substancialmente o país, afirmam observadores.

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Foto: Reuters

"Pode haver uma mudança na Coreia do Sul após Sewol? Tomara." Esse tuíte, escrito quase um mês após a catástrofe, basta para explicitar a pergunta central, que não sai da cabeça de muitas pessoas na Coreia do Sul.

"Crescimento a qualquer preço", o lema, com o qual a Coreia do Sul se identifica há décadas, expressa nada menos do que a autoimagem do país. E suscita um autoquestionamento torturante: se foi essa diretriz, antes motivo de orgulho, a culpada pelo acidente de 16 de abril último.

A embarcação Sewol, com 476 passageiros e tripulantes, inclusive 325 escolares, virou na costa sudoeste coreana; somente 172 pessoas puderam ser salvas. As operações de resgate ainda estão em andamento; até hoje nem todos os desaparecidos puderam ser resgatados.

A esperança inicial dos familiares de encontrar sobreviventes, há muito se transformou em desespero e, sobretudo, em ira: frente à gestão de crise do governo sul-coreano e das autoridades. Os sobreviventes exigem respostas. Eles querem saber por que as primeiras operações de resgate foram iniciadas tão tarde e exigem a punição dos responsáveis, em frequentes manifestações nas cercanias do palácio presidencial.

Procura pelos culpados

Somente após quase duas semanas a presidente da Coreia do Sul, Park Geun-hye pediu publicamente desculpas ao povo de seu país, e admitiu erros na gestão da catástrofe. Pouco antes, o anúncio da renúncia do primeiro-ministro Chung Hon-won já fora uma primeira consequência no quadro de pessoal.

Além disso, o CEO da companhia de navegação Chong Hae Jin Marine e outros quatro funcionários estão em prisão preventiva e, na quinta-feira (15/05), o capitão três outros membros da tripulação foram indiciados por homicídio culposo. Todos os demais membros da tripulação da balsa Sewol estão sob custódia.

Kim Han Sik Fähre Fährunglück Südkorea Chef Reederei
Kim Han-sik, chefe da companhia responsável pela balsa naufragada, foi preso no início de maioFoto: picture-alliance/AP Photo

Mas tudo isso não é suficiente para tranquilizar os sul-coreanos, normalmente tão disciplinados. Um mês após o naufrágio da balsa Sewol, o país ainda cambaleia, escreveu o autor sul-coreano Kim Young-ha, em artigo publicado no jornal The New York Times.

"Para quem está de fora, pode parecer que a tragédia de Sewol seria uma tragédia como qualquer outra. Uma tragédia, uma que a nação vai, forçosamente, superar a qualquer momento." Mas tal imagem é enganosa, na visão do autor.

"Aqui, na Coreia do Sul, a sensação é de que o país jamais será o mesmo. O acidente traumatizou nossa psique nacional e minou a nossa autoimagem." Segundo Kim, muitos coreanos estão se perguntando se "o crescimento descontrolado, aliado à regulamentação negligente por parte do governo", não teria um preço alto demais.

Valores estáveis na berlinda

Lee Eun-jeung, a Universidade Livre de Berlim, fez observações semelhantes. Ela diz reconhecer uma nova tendência no país, desde o acidente. "Surgem agora muitas dúvidas quanto à receita de sucesso sul-coreana. Antigamente, isso não ocorria", comentou à Deutsche Welle. Mas as crianças que afundaram junto com a balsa, diante dos olhos da nação, teriam mudado algo, crê a professora do Instituto de Estudos Coreanos.

Na mentalidade da sociedade sul-coreana, o sucesso vale mais que a vida humana: é essa a noção atormentadora que não deixa em paz muita gente. "Os adultos têm um sentimento de culpa em relação à geração mais jovem, porque nós mesmos criamos esse sistema e agora crianças se tornaram vítimas dele."

Park Geun-hye Trauer um Opfer des Fährunglücks
Comportamento da presidente sul-coreana, Park Geun-hye, é criticadoFoto: Reuters

A morte de 300 pessoas – a maioria delas escolares de uma excursão – mergulhou a Coreia do Sul numa crise de identidade, uma opinião também compartilhada por Kim Young-ha."Nós mergulhamos em autorreflexão. Todo o nosso progresso foi apenas uma fachada? Somos realmente um país desenvolvido?", pergunta o autor. E Norbert Eschborn, da Fundação Konrad Adenauer em Seul, falou à DW sobre um "exame de consciência, uma espécie de busca espiritual no país".

A Coreia do Sul vivenciou um crescimento econômico sem precedentes. Em poucas décadas, Seul conseguiu se desenvolver, de nação em desenvolvimento, devastada pela colonização e pela guerra, em economia industrial e país doador. Hoje, a Coreia do Sul é membro do G20 (grupo das 20 maiores economias do planeta). Em 2012, seu Produto Interno Bruto (PIB) girou em torno de 1,1 trilhão de dólares.

Mas o crescimento meteórico também transcorreu em detrimento da segurança: no passado já aconteceram diversos acidentes, como o naufrágio de uma embarcação em 1993, que custou 292 vidas. Dois anos depois, o desabamento de um centro comercial matou mais de 500. E no início de 2003, um incêndio num metrô na cidade de Daegu provocou 213 mortes.

Corrupção e entrelaçamento entre governo e empresas

Outro problema onipresente na Coreia do Sul é o nepotismo, que também é um tema recorrente na sequência do desastre da balsa. No país, há a tradição de Estado e setor privado estarem intimamente interligados. "Isso é algo bem conhecido. Mas até agora a política e o empresariado conseguiram evitar grandes escândalos", relata Lee Eun-jeung, da Universidade Livre de Berlim.

Südkorea Bergungsarbeiten Fährunglück 22.04.2014
Trabalhos de resgate continuam: 23 pessoas seguem desaparecidasFoto: picture-alliance/AP Photo

No entanto, o naufrágio da Sewol lança um foco negativo sobre esse estado de coisas. Por exemplo: é justamente a associação lobista das empresas de navegação, a Korea Shipping Association, a responsável pelo licenciamento de navios – e, portanto, pelos controles de qualidade e segurança.

No curso das investigações sobre o naufrágio da embarcação, são cada vez maiores as suspeitas de que a empresa Chong Hae Jin Marine teria violado as normas de segurança: os investigadores acreditam que um excesso de carga e anteriores alterações na construção tenham acarretado a emborcação da balsa. Neste meio tempo, o governo suspendeu a licença da companhia de navegação para a rota do naufrágio. Além disso, a empresa pretende também renunciar voluntariamente às licenças de operação para outras rotas, explicou um porta-voz do Ministério da Marinha.

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Unidos na dor: o acidente mudou a Coreia do SulFoto: Reuters

"Capitã da embarcação Coreia do Sul"

Com o correr do tempo, a tragédia irá pouco a pouco desaparecer da mente das pessoas, afirmou um editorial do jornal Korea Times. Mas não entre os sobreviventes. Apoiá-los é tarefa de todo o país, escreveu o autor. "A nação é responsável em compartilhar a dor dos familiares e a sua frustração com o fracasso do sistema social na Coreia do Sul."

Um mês após a catástrofe, o veredicto contra a presidente Park Geun-hye é duro: o comportamento da "capitã da embarcação Coreia do Sul" e de seu governo lembra aquele do incompetente e irresponsável capitão da balsa que naufragou.