1. Pular para o conteúdo
  2. Pular para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW

Lula atira no próprio pé ao equiparar Gaza ao Holocausto

Thomas Milz
Thomas Milz
21 de fevereiro de 2024

Presidente parece achar que criticar Israel rende pontos com o Sul Global e votos em casa. Alimentar polêmicas baseadas numa visão de mundo binária, porém, só irá minar sua ambição de ser uma voz internacional de peso.

https://p.dw.com/p/4cdFu
Lula e o premiê da Etiópia (e) conversam com o representante de um outro país na Assembleia da União Africana em Adis Abeba
Com sua fala, Lula deixou a arena internacional da diplomacia em Adis Abeba para caminhar em direção às profundezas da campanha eleitoral brasileiraFoto: AMANUEL SILESHI/AFP

O presidente do Brasil aparentemente acredita que criticar Israel é algo que rende pontos em casa. Na grande arena internacional, porém, ele só deve poder contar com o aplauso de algumas lideranças do Sul Global.

"O que está acontecendo na Faixa de Gaza e com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu: quando Hitler resolveu matar os judeus." É essa frase, dita no domingo (18/02) a jornalistas às margens de um encontro da União Africana na capital etíope, Adis Abeba, que levou a uma crise diplomática entre Israel e Brasil.

Poucos assuntos dividem opiniões globalmente e há tanto tempo quanto a questão da Palestina. Quem tem o direito de viver no território do antigo Mandato Britânico da Palestina, onde hoje estão o Estado de Israel e os territórios palestinos? E uma solução de dois Estados ainda é possível? Décadas de esforços da diplomacia global não deram conta de resolver essas questões e apaziguar a situação explosiva.

É legítimo questionar se a reação do governo israelense ao massacre do Hamas de 7 de outubro é adequada e se a caçada das forças israelenses aos terroristas do Hamas atenta contra seu dever de proteger civis. Muitos israelenses também criticam a política do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e a forma como o Exército israelense age.

Numa declaração provavelmente preparada pelo seu Ministério das Relações Exteriores, Lula condenou tanto o ataque terrorista do Hamas quanto a medida da reação israelense. Exigir uma solução de dois Estados, como ele o fez, também é uma posição legítima do governo brasileiro. 

Mas com Lula os problemas começam sempre quando ele deixa as declarações oficiais de lado e age impulsivamente, achando que precisa anunciar sua opinião. Seu ego quer ser ouvido, e lhe diz todas as vezes que ele é mais sabido que todos os doutores diplomados e diplomatas. E é aí que surgem declarações como a que comparou Gaza ao Holocausto.

Naquele momento Lula deixou a arena internacional da diplomacia em Adis Abeba para caminhar em direção às profundezas da campanha eleitoral brasileira, da qual sairão, em outubro, os novos prefeitos e vereadores dos mais de 5 mil municípios do país. Será que ele espera ganhar votos atacando Israel?

Chamar opositores políticos de "fascista" ou "genocida" é algo que há muito tempo faz parte do repertório normal dele e do discurso de esquerda no Brasil, assim como a mania da direita de desprezar qualquer crítico como "comunista". Ainda que Lula sempre diga querer acabar com a divisão da sociedade brasileira entre "lulistas" e "bolsonaristas", ele continuamente alimenta essa polêmica.

Mas a terrível comparação com o Holocausto não teria sido possível sem a premissa de que Israel, da perspectiva brasileira, pertence ao mesmo lado que Jair Bolsonaro. Evangélicos brasileiros se veem próximos do povo judeu e de Israel, o que explica por que sempre há bandeiras israelenses em eventos do campo bolsonarista. Com isso, Israel, e com frequência também os judeus (que obviamente não representam o Estado de Israel), tornam-se automaticamente suspeitos de pertencerem à extrema direita global. 

O PT se vê como parte da tal "resistência" do Sul Global contra uma suposta opressão do Norte Global – leia-se: das nações brancas e industrializadas, com suas heranças coloniais. Isso torna mais simples a divisão do mundo entre bem e mal e explica por que ditaduras como as de Venezuela, Cuba e Nicarágua não são criticadas e os crimes de guerra de Putin na Ucrânia, bem como as violações de direitos humanos contra opositores russos, são ignorados.

Também a brutal opressão de meninas e mulheres no Irã, no Afeganistão e em outros países não é abordada, já que esses países são considerados parte do Sul Global ou até mesmo, no caso do Irã, pertencem à agora ampliada "comunidade do Brics". Portanto, é provável que a comparação com o Holocausto renda a Lula aplausos no Sul Global e simpatizantes. No resto do mundo, porém, as pessoas esfregam os olhos com incredulidade.

Talvez o Brasil continental, autocentrado e auto-suficiente – diga-se: focado em si mesmo – esteja apenas longe demais – geográfica, cultural e emocionalmente – de todas essas crises para que se possa esperar de Lula que tenha uma visão mais diferenciada. Com suas declarações estranhas como a de que a Ucrânia tem sua parcela de culpa pela guerra, o ex-líder sindical torpedeia a própria ambição de ser uma voz de peso no mundo. O Brasil preside o G20 este ano, e também almejaum assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Pode-se ter a opinião que se tiver sobre Netanyahu. Numa coisa, porém, ele está certo: a comparação de Lula com o Holocausto ultrapassou uma linha vermelha. Ele desonra a memória dos mais de 6 milhões de judeus mortos pelos nazistas e ataca os judeus em todo o mundo, difamando-os coletivamente por causa da política de Netanyahu em Gaza.

Ademais, a declaração de Lula é simplesmente falsa do ponto de vista histórico. A história está repleta de genocídios cruéis. Lula deveria deixar de lado seu ego e estudar história. Ou simplesmente se ater aos pronunciamentos de seus diplomatas – eles são conhecidos por acertarem o tom.

--

Thomas Milz saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos.

O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente da DW.

Thomas Milz
Thomas Milz Jornalista e fotógrafo