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ConflitosOriente Médio

O papel da Síria no conflito entre Israel e Hamas

Cathrin Schaer | Omar Albam em Idlib (Síria)
15 de novembro de 2023

Israel está bombardeando aeroportos sírios, enquanto milícias armadas pelo Irã disparam mísseis de dentro da Síria em direção ao território israelense. Mas qual a real importância da Síria no atual conflito?

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Líderes de países árabes e muçulmanos caminham após posar para uma foto oficial
Líderes de países árabes e muçulmanos durante cúpula em Riade, na Arábia Saudita, para discutir situação em Gaza; ativistas sírios apontam hipocrisia Foto: Saudi Press Agency/dpa/picture alliance

Ativistas sírios que protestaram contra o governo de seu país reagiram horrorizados ao ver o presidente Bashar al-Assad numa cúpula especial sobre o conflito Israel-Hamas na Arábia Saudita realizada no início de novembro.

Num país em guerra há mais de uma década, esses ativistas responsabilizam o ditador por algumas das piores barbaridades cometidas na Síria nesse período: o deslocamento forçado de milhões, a tortura de milhares, e um saldo de mortos estimado em meio milhão.

"O discurso de Assad nos encontros em Riade sobre a situação em Gaza pode ganhar um prêmio de momento mais hipócrita do mundo", afirma à DW Celine Kassem, que é ativista e responsável pela comunicação da Syrian Emergency Taskforce, uma ONG baseada em Washington, nos Estados Unidos, que investiga crimes de guerra e trabalha em prol de civis afetados pelo conflito.

No sábado (11/11), Assad discursou na Arábia Saudita durante uma cúpula que reuniu membros da Liga Árabe, o órgão de cooperação regional, e da Organização para Cooperação Islâmica. No encontro, tanto ele como outros líderes árabes acusaram Israel de ignorar o direito humanitário internacional e cometer crimes de guerra contra civis em Gaza. Assad, em sua fala, ainda criticou acordos firmados por países do Oriente Médio com Israel para o estabelecimento de relações diplomáticas.

Outra organização síria de oposição a Assad reagiu no X, antigo Twitter, afirmando que, ao criticar a operação militar de Israel em Gaza, o ditador tenta varrer para debaixo do tapete os crimes cometidos – com a ajuda da Rússia – pelo seu próprio regime, citando mais de 530 ataques a instalações médicas.

Israel tem bombardeado a Faixa de Gaza desde 7 de outubro, quando teve seu território invadido por membros do Hamas num atentado terrorista que deixou ao menos 1.200 mortos. Outras 240 pessoas são mantidas em cativeiro pelo grupo radical islâmico, que controla o enclave e é considerado uma organização terrorista por União Europeia e Estados Unidos.

No lado palestino, o saldo de mortos passa de 11 mil, segundo autoridades em Gaza – e embora não seja possível verificar essas informações de forma independente, uma assessora do governo americano para assuntos relacionados ao Oriente Médio afirmou recentemente em audiência no Congresso que o número de vítimas pode ser maior.

"Fiquei enojado de ver um criminoso de guerra desses, uma pessoa com uma história tão sombria, falar sobre essas coisas perturbadoras", ressente-se o jornalista e ativista Ibrahim Zeidan, que reside em Idlib, uma área no norte da Síria sob controle da oposição. "Durante a fala dele, lembrei dos ataques [a sírios] com armas químicas, de ver crianças e civis sem poder respirar – e sem nenhuma ajuda médica, porque todos os hospitais em Khan Shaykhun [no sul de Idlib] haviam sido bombardeados naquele dia."

E não só sírios foram vítimas do regime, acrescenta Kassem. As tropas de Assad também cercaram e bombardearam palestinos que haviam se refugiado na Síria – um país que um dia defendeu a ideia de um Estado para os palestinos.

Laços entre sírios e palestinos são complexos

A relação da Síria com os palestinos e com o Hamas é longa e complicada.

O Hamas tem suas raízes no grupo transnacional Irmandade Muçulmana, que prega que a política deve ser guiada pela religião, que promove atividades comunitárias e de assistência social, e que também tem um braço armado.

Na Síria, a Irmandade Muçulmana fez oposição ao domínio de décadas da família Assad. Em 1982, quando o pai de Bashar al-Assad, Hafez, estava no poder, tropas sírias esmagaram uma revolta liderada pela Irmandade Muçulmana na cidade síria de Hama, matando entre 10 mil e 30 mil pessoas da região, segundo estimativas.

Mais tarde, o governo sírio orgulhosamente apoiou a causa palestina, que sempre teve a simpatia de muitos ali. Damasco se tornou um refúgio e lar para quase meio milhão de palestinos em fuga do conflito com Israel.

Por anos, a Síria também abrigou um líder exilado do Hamas, Khaled Mashaal – isso apesar de a família Assad frequentemente se estranhar com o grupo, mesmo quando tentava manobrá-lo em nome de seus próprios interesses geopolíticos.

Mas em 2012, quando a até então pacífica revolução síria começou a virar uma guerra civil sangrenta, a relação azedou. O Hamas se recusou a tomar partido na insurreição síria; seu antigo líder, Mashaal, foi para o Catar, onde vive até hoje.

Enclave sitiado em Damasco

Durante a guerra civil síria, como pontua a ativista síria Kassem, forças do governo alvejaram intencionalmente civis palestinos no distrito de Yarmouk, um bairro de maioria palestina que se originou de um campo de refugiados. Após forças rebeldes tomarem Yarmouk, as tropas de Assad impuseram um cerco, barrando a entrada de comida, medicamentos, energia e outros mantimentos. Como ninguém podia entrar ou sair dali, muitos passaram a se referir ao lugar como a "Gaza da Síria".

No ano passado, depois que Assad – em nome da manutenção da estabilidade regional – foi convidado a voltar à Liga Árabe após uma década suspenso por causa da guerra civil, seu governo fez as pazes com o Hamas.

Ainda assim, há muitos sinais de que o Hamas e Assad não confiam um no outro, conforme argumentado pelo pesquisador Samuel Ramani numa análise do Royal United Services Institute , um think tank britânico da área de segurança.

Multidão se aglomera em uma rua destruída por bombardeios para conseguir comida no campo de refugiados de Yarmouk, na Síria
No campo de refugiados de Yarmouk, na Síria, moradores se aglomeram em 2014 para conseguir comida em meio a um rígido cerco imposto pelo regimeFoto: UNRWA via AP/picture alliance

A atual posição do regime de Assad

Depois da cúpula em Riade, foi emitida uma declaração conjunta. Nela, países árabes e muçulmanos exigem um cessar-fogo e o fim do bloqueio israelense à Faixa de Gaza, de modo a permitir a entrada de energia, água, comida, medicamentos e outros suprimentos. O grupo também apela ao Tribunal Penal Internacional (TPI) para que investigue "crimes de guerra e crimes contra a humanidade" que Israel estaria cometendo em territórios palestinos.

O governo sírio também assinou a resolução. Mas, fora isso, o país não tem desempenhado um papel de destaque no atual conflito.

Ramani ressalta que, embora o regime tenha expressado solidariedade para com Gaza, ao mesmo tempo se absteve de maiores atritos com Israel. "A resposta do regime sírio à guerra em Gaza teve retórica estridente, mas ação contida, já que ele não quer assumir riscos políticos e de segurança em nome do Hamas."

Até agora, segundo Ramani, a Síria manteve as ações militares contra Israel restritas a disparos de artilharia e de mísseis nas Colinas de Golã, área sob ocupação israelense – mas essas ações já ocorrem há anos.

O Exército israelense continua a disparar mísseis na direção de aeroportos em Damasco e Aleppo para tirá-los de operação e impedir o envio de combatentes ou armamentos pelo Irã. Mas Israel não tentou eliminar alvos militares russos ou sírios. Os Estados Unidos dizem ter investido contra o que seriam bases iranianas na Síria.

Governo de Assad está 'muito enfraquecido'

Numa entrevista ao site Syria Direct, o especialista em Síria Joseph Daher argumenta que o governo de Assad é, na verdade, um "ator muito fraco" e "passivo", desprovido de poderio militar próprio, e que sobreviveu à guerra civil graças ao apoio militar e à intervenção russa e iraniana.

Se é improvável que o governo sírio aja por conta própria, o mesmo não pode ser dito das várias milícias operando em território sírio com o apoio do Irã – estas agem quase independentemente de Assad.

Mas analistas avaliam que, neste momento, ninguém parece querer isso. "Apesar da sequência de ataques e contra-ataques, nenhum dos lados – EUA e Israel, de um lado, e o Irã e os grupos que ele apoia, do outro – parece querer uma escalada regional grande [do conflito]", consta de análise recente publicada pelo International Crisis Group. "Mas enquanto a guerra em Gaza continuar, esse risco seguirá aumentando."

Para ativistas sírios deslocados ou vivendo no exílio enquanto lutam por justiça, tudo que está acontecendo no Oriente Médio deveria ser visto como interconectado. Alguns afirmam que a impunidade do regime de Assad no cometimento de crimes contra a humanidade – bombardeios de hospitais, mortes de jornalistas e o uso de armas químicas – levou à degradação de todo o sistema de direito humanitário internacional.

A presença de Assad em Riade e em outros eventos internacionais "é um lembrete doloroso da luta contínua por paz e justiça na nossa região", afirma o jornalista Zeidan à DW. "E deveria lembrar a todos nós da necessidade de justiça e de responsabilização pelas coisas terríveis que aconteceram na Síria."