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A onda negra do Carnaval

23 de fevereiro de 2023

Se emocionar e sambar com a negritude deveria ser uma espécie de antídoto para a naturalização da discriminação e criminalização aleatória da população negra. Mas não é.

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Bloco Olodum passa pelas ruas do Pelourinho, em Salvador. Integrantes usam vestes brancas e vermelhas com símbolo do grupo, que também enfeita os tambores do bloco. Ao fundo, foliões acompanham encostados a paredes das casas.
Bloco de afoxé Olodum em Salvador: grupo foi criado durante a ditadura militar para garantir à população negra a possibilidade de brincar o Carnaval reverenciando sua negritudeFoto: Mauro Akin Nassor/Fotoarena/IMAGO

Salvador, 20 de fevereiro de 2023.

Dezenas de meninos e jovens são conduzidos pelas forças policiais com as mãos acorrentadas, para que não haja tentativa de fuga. Todos, absolutamente todos, são negros e pobres.

Essa cena, de um vídeo que circulou sobre o Carnaval baiano, não é novidade em Salvador, a capital mais negra no Brasil. Na realidade, essa cena não é novidade na longa história brasileira, que foi forjada pela venda de milhares de africanos escravizados ao longo de mais de 300 anos. Um tráfico que se iniciava justamente com o sequestro e aprisionamento de homens e mulheres negros, acorrentados uns aos outros pelas mãos, para que não fugissem até chegarem às cidades costeiras, locais em que embarcariam nos navios negreiros.

É certo que muita coisa mudou desde o fim efetivo do tráfico transatlântico para o Brasil (em 1850) e o Carnaval de 2023. Tivemos a abolição da escravidão, a proclamação da República e uma diversidade de lutas negras pelo fim das desigualdades orquestradas pelo racismo. Mas ainda temos muitas permanências. E é absolutamente chocante o medo que a onda negra causa nos órgãos responsáveis pela manutenção da ordem no Brasil.

Muitos podem alegar que esses jovens negros provavelmente fizeram algo para estar nessa situação. Bateram carteiras, furtaram celulares, ou cometeram qualquer outro tipo de crime característico das grandes aglomerações. Mas seria a nossa polícia tão eficaz a ponto de reconhecer de 20 a 30 suspeitos de crimes em pleno Carnaval de Salvador? Ou será que o critério para definir e prender esses suspeitos teria sido a pele negra deles?

Não sei se o que considero mais desolador é a cena em si – que poderia, e que acontece em outras cidades do Brasil –, ou se o fato de essa cena ser recorrente, quase que "natural" em pleno Carnaval, a festa mais negra do Brasil.

Embora o Carnaval tenha sua origem no Velho Mundo – há quem defenda que ele é uma festa cristã, embora alguns estudos apontem seu nascimento na Mesopotâmia, durante as comemorações do equinócio da primavera –, por aqui ele foi literalmente reinventado pela população negra, ganhando outros contornos e significados. E, durante muito tempo, para as autoridades responsáveis pela "ordem e boa governança", a onda negra do Carnaval foi sinônimo de bagunça, arruaça, selvageria.

Mas qual seria o real significado desse medo branco da onda negra carnavalesca?

Quem conhece a história brasileira em seus pormenores sabe o que o Carnaval negro sempre foi, e continua sendo: resistência.

No Rio de Janeiro, por exemplo, os cordões e blocos que nasceram no final do século 19 e proliferaram no começo do século 20 estavam diretamente ligados às associações e agremiações de trabalhadores negros, fazendo parte de uma forma muito específica de fazer política que esses homens e mulheres encontraram em meio à uma República que se queria branca.

As histórias das escolas de samba (tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo) têm em seus respectivos DNAs esses mesmos cordões e associações negras, fazendo de seus sambas-enredos verdadeiros instrumentos de negociação e conflito com o Brasil desejado pelas elites brancas.

Negritude não é mera alegoria carnavalesca

Em Salvador, muito antes das micaretas e trios elétricos dos últimos anos, existiam os blocos de afoxés. Os dois mais conhecidos, Ilê Aiyê e Olodum, foram criados na década de 1970, em plena ditadura militar, com o objetivo de assegurar a possibilidade de a população negra brincar o Carnaval reverenciando sua negritude e fazendo dela um espaço e uma possibilidade de se entender no mundo. Um objetivo que, como se pode imaginar, é muito maior que os quatro dias de Carnaval e que, não por acaso, foi malvisto pelos órgãos repressores da ditadura.

Esses exemplos – que na verdade dizem respeito a dois "carros-chefes" do Carnaval brasileiro – demonstram que a negritude não é mera alegoria carnavalesca.

As reverências históricas à negritude (em sua pluralidade) são parte constitutiva da festa momesca, basta olhar os temas dos sambas-enredos das escolas de samba do Rio de Janeiro nesse 2023, o ano da retomada.

Para quem só teve acesso à dita história oficial, esse ano a Sapucaí foi um verdadeiro convite para conhecer outras histórias do Brasil. Um convite que todo ano é feito pelos blocos de afoxés.

Convites que são bem recebidos pela maior parte da população (que se acaba no Carnaval), mas que nem sempre são compreendidos na sua dimensão mais ampla, inclusive por aqueles que são responsáveis por julgar as escolas de samba – uma posição que, vale dizer, continua sendo ocupada majoritariamente por pessoas brancas.

Se emocionar e sambar com a negritude deveria ser uma espécie de antídoto para a naturalização da discriminação e criminalização aleatória da população negra. Mas não é... Ainda são poucos aqueles que realmente se permitem aprender com a onda negra do Carnaval.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.