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Cimeira Rússia-África: Quem ganha o quê?

Maria Katamadze
27 de julho de 2023

Depois de ter bloqueado as exportações de cereais da Ucrânia, Moscovo quer apresentar-se como "amigo" de África. Mas alguns líderes africanos consideram a suspensão do acordo "uma punhalada nas costas".

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Maliano ergue a bandeira da Rússia
Foto: Nicolas Remene/Le Pictorium Agency via ZUMA Press/picture alliance

O evento de dois dias, a 27 e 28 de julho, surge na sequência da recente decisão de Moscovo de se retirar da Iniciativa para os Cereais do Mar Negro, mediada pela Turquia e pela ONU, que permitia à Ucrânia, devastada pela guerra, exportar em segurança cereais para o continente africano a partir dos seus portos do Mar Negro.

No entanto, a suspensão do acordo por parte de Moscovo deixou as nações africanas preocupadas com as perspectivas de escassez de alimentos. Quais poderão ser os desenvolvimentos potenciais da cimeira?

Segurança alimentar em África no topo da agenda

A segurança alimentar nos países africanos será um dos principais temas da cimeira de São Petersburgo.

"A criação de corredores e plataformas logísticas não só para alimentos e fertilizantes, mas também para quaisquer outros produtos produzidos pela Federação Russa - este será um dos tópicos de discussão", disse Oleg Ozerov, embaixador geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo, à agência estatal russa RIA, na terça-feira (25.07)

Na semana passada, Moscovo anunciou a sua decisão de se retirar do acordo sobre os cereais, afirmando que "em vez de ajudar os países realmente necessitados, o Ocidente utilizou o acordo sobre os cereais para chantagem política". No dia seguinte, foram lançados mísseis russos sobre o porto ucraniano de Odessa, onde os cereais estavam armazenados.

A ONU apelou a Rússia a reativar acordo da exportação de cereais
A ONU apelou a Rússia a reativar acordo da exportação de cereaisFoto: BRENDAN MCDERMID/REUTERS

Embora a maioria dos líderes africanos se tenha abstido de fazer comentários antes da cimeira, alguns países africanos manifestaram a sua indignação. Korir Sing'Oei, o mais alto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Quénia, descreveu a iniciativa de Moscovo como uma "punhalada nas costas".

De acordo com os meios de comunicação social, cerca de 15 chefes de Estado africanos decidiram reduzir a sua presença mesmo antes da cimeira, enviando ministros dos Negócios Estrangeiros, primeiros-ministros e embaixadores. Anteriormente, Moscovo tinha-se queixado da pressão ocidental sobre os líderes africanos para os persuadir a ignorar a cimeira.

Antes do início do evento, existia a convicção generalizada de que o Kremlin iria aproveitar a cimeira para anunciar um possível restabelecimento do fornecimento de cereais, para aparecer como "o salvador" do acordo.

Na segunda-feira (24.07), o Presidente russo, Vladimir Putin, sugeriu que Moscovo poderia entregar os cereais e os fertilizantes "numa base comercial e gratuita", contornando a Ucrânia.

Hoje, o Presidente russo disse que a Rússia poderá enviar gratuitamente entre 25.000 e 50.000 toneladas de cereais a seis países africanos nos próximos quatro meses.

No entanto, Alexei Tselunov, especialista em assuntos africanos, alerta para o facto de a medida russa não proporcionar estabilidade a longo prazo nos preços dos alimentos.

"Os mercados não funcionam assim; não se pode isolar a Ucrânia dos seus clientes e substituir os seus cereais pelos vossos. Foi o próprio acordo, e não as quantidades de cereais disponíveis para transporte, que manteve os preços baixos", disse à DW.

Os líderes africanos, por sua vez, "podem empurrar a Rússia de volta para a mesa de negociações com a Ucrânia, a ONU e a Turquia para evitar o aprofundamento da instabilidade política nos seus países", disse.

Vladimir Putin (esq.) e Cyril Ramaphosa (dir.)
Presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa (dir.), visitou Moscovo para promover negociações e soluções diplomáticasFoto: Ramil Sitdikov/TASS/dpa/picture alliance

A diplomacia dos cereais de Moscovo 

Embora a Rússia esteja fortemente isolada pelo Ocidente e pressionada pelas suas sanções, alguns observadores pensam que a crescente dependência de África em relação a Moscovo será utilizada por Putin para obter benefícios políticos rápidos.

"O acordo poderá resultar numa maior abstenção nas votações da ONU que condenam a Rússia, levando os líderes africanos a pressionar os governos ocidentais para que aliviem as restrições económicas com o objetivo final de adquirir uma posição mais sólida nas negociações com o Ocidente quando chegar a altura certa", afirmou Tselunov.

À luz do mandado de captura do Tribunal Penal Internacional contra Putin por crimes de guerra na Ucrânia, bem como da recente revolta do Grupo Wagner, Moscovo tentará projetar uma imagem de normalidade, dizem os observadores.

Os países africanos têm-se empenhado em encontrar soluções para acabar com a guerra na Ucrânia. Em maio, uma delegação de sete países africanos, liderada pelo Presidente sul-africano Cyril Ramaphosa, visitou Kiev e Moscovo para promover negociações e soluções diplomáticas.

"A maioria dos países africanos condena a invasão, mas não gosta da ideia de que se está do nosso lado ou contra nós. É isso que faz com que as pessoas se sintam constrangidas", afirmou Amaka Anku, diretora de Práticas Africanas do Grupo Eurasia, numa conferência recente. 

O que podem os países africanos ganhar com a cimeira? 

A anterior cimeira Rússia-África, realizada em Sochi em 2019, seguiu um plano ambicioso para duplicar o volume de comércio e aumentar os investimentos russos no continente. No entanto, as promessas de Sochi não se concretizaram e as esperanças dos líderes africanos que procuravam oportunidades de investimento foram frustradas.

Nos últimos anos, o volume de comércio entre a Rússia e África tem-se mantido estável, em cerca 13 a 18 mil milhões de euros. Segundo os analistas, os volumes comerciais relativamente pequenos fazem de Moscovo um parceiro económico menos atraente para os países africanos, especialmente em comparação com a China e os países ocidentais. Os investimentos russos em África também são baixos, representando cerca de 1% do investimento direto estrangeiro (IDE).

Mas porque é que os países africanos ainda estão interessados em estabelecer laços económicos estreitos com a Rússia?

A razão reside no passado, quando a antiga União Soviética esteve ao lado de muitos países africanos na sua luta pela libertação. Até hoje, o sentimento nostálgico molda as atitudes de África em relação a Moscovo.

O subfinanciamento crónico do continente africano é outra questão fundamental.

"Os países africanos têm falta de capital. o maior desafio é o financiamento. O que se pretende estrategicamente é ter o maior número possível de opções", disse Amaka Anku, do Eurasia Group.

Zentralafrikanische Republik Bangui | Russische Wagner-Kräfte sichern Präsident Faustin-Archange Touadéra
Grupo Wagner na República Centro-AfricanaFoto: Leger Kokpakpa/REUTERS

Os negócios de armamento de Moscovo e a presença de Wagner no continente

Outro fator atrativo para muitos países africanos e um possível tópico de discussão durante a cimeira são os negócios de armas.

Embora o negócio de armamento da Rússia tenha sofrido um golpe devido à guerra da Ucrânia, a Rússia continua a ser o principal fornecedor de armas a África, com uma quota de mercado de 40%, em comparação com a quota dos EUA de 16%. A quota da China é de cerca de 10%, enquanto a França representa cerca de 8%.

A influência russa em África também aumentou com a presença do grupo paramilitar Wagner, liderado por Yevgeniy Prigozhin. A milícia é amplamente vista como um instrumento informal de política externa para Moscovo e como um serviço de segurança para Estados africanos em conflito. O Grupo Wagner não só ajuda a reforçar os laços em nome de Moscovo, como também obtém benefícios financeiros do acesso a recursos naturais como o ouro, o petróleo e os diamantes.

Apesar do aumento da influência russa e da pressão ocidental, os países africanos estão ansiosos por serem vistos como um ator geopolítico independente, disse à DW Gustavo de Carvalho, investigador sénior sobre as relações Rússia-África no Instituto Sul-Africano de Assuntos Internacionais, um grupo de reflexão independente.

"O continente está preocupado com o facto de ter sido usado como um peão nas disputas geopolíticas globais, tanto pelos russos como pelo Ocidente. É por isso que é importante que os países africanos apresentem uma frente unificada em termos de objetivos", concluiu o especialista.

Porque África quer mediar a guerra da Rússia na Ucrânia