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Património lusófono no Benin é preservado com dificuldade

Joana Brandão3 de novembro de 2014

Cerca de 500 edificações construídas por ex-escravos retornados do Brasil podem ser encontradas na capital do Benin, apesar das dificuldades de conservação. Há também outras manifestações culturais que ainda sobrevivem.

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Foto: Roch Kiki

No Benin, continua a ser difícil preservar a cultura lusófona agudá ou afro-brasileira, como também é conhecida.

Os agudás são um dos 40 grupos étnicos que convivem no país da costa da África Ocidental, onde são faladas 27 línguas e dialetos. A etnia, que compõe cinco por cento da população do Benin, é formada pelos descendentes dos escravos que regressaram do Brasil no século XIX, após conseguirem a liberdade, para recomeçar a vida na África.

Dois projetos de cooperação internacional com participação de Brasil, França e Benin tentam preservar o patrimônio da cultura agudá. As iniciativas contam com aproximadamente 700 mil euros, que não chegam para uma tarefa tão grande.

Restaurierungskurs Benin
Jovem beninense trabalha em recuperação de casarão agudáFoto: Roch Kiki

Jovens recuperam arquitetura

Um dos projetos de preservação teve início em dezembro de 2012 e será concluído em dezembro deste ano, com a formação de quinze jovens na restauração arquitetônica dos edifícios de tradição afro-brasileira. O projeto deriva de uma parceria das prefeituras das cidades de Lyon, na França, Fortaleza, no Brasil, e Porto Novo, no Benin, com o apoio da Agência Brasileira de Cooperação (ABC).

Técnicos brasileiros do Curso de Conservação e Restauração do Instituto Federal de Minas Gerais ministraram aulas na capital do Benin e está também a ser realizada a restauração de um prédio de arquitetura agudá.

"Essa é uma arquitetura importante em nosso país e antes não havia conhecimento como fazer a restauração desses prédios raros e antigos", diz Roch Gbénahou, representante da Casa de Património e Turismo da prefeitura de Porto Novo. Segundo Gbénahou, é preciso fazer um reconhecimento e preservação dos cerca de 500 prédios desta arquitetura na capital. "É muito importante para o nosso povo ter conhecimento sobre a restauração do património."

De acordo com Alexandre Mascarenhas, professor do IFMG a ministrar aulas no projeto, muitos jovens não conheciam a história dos prédios nem sabiam de sua importância. "A memória imaterial é mais percebida, mais absorvida. Já o saber material se perdeu praticamente com os últimos que fizeram as construções, que não conseguiram repassar isso para a outra geração", reflete.

Ele ressalta ainda que é emergente uma ação para conservar este patrimônio: "Muita coisa está se perdendo. Mas o acervo continua a ser muito grande. Ao andar em Porto Novo, vê-se que ainda há muitos quarteirões intactos, apesar de o estado de conservação ser precário".

Restaurierungskurs Benin
Alexandre Mascarenhas (ao centro) com os estudantes do curso de RestauraçãoFoto: Roch Kiki

Tecnologia de preservação

Outro projeto desenvolvido pela Agência Brasileira de Cooperação e pela prefeitura da capital de Benin pretende incentivar a troca de conhecimento entre especialistas em preservação de patrimônio. Ele prevê a realização de um inventário do património cultural, material e imaterial, dos agudás, a realização de uma publicação bilíngue (português e francês) sobre o tema e seminários nos dois países para difusão da experiência e desta cultura.

A primeira atividade foi uma oficina realizada em Benin sobre como fazer um inventário do patrimônio. Segundo Marcelo Brito, assessor de Relações Internacionais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), do Brasil, responsável pelo projeto, o material produzido pelos beninenses a partir do conhecimento transmitido na oficina surpreendeu pela qualidade e quantidade.

O projeto, entretanto, teve as atividades suspensas, a pedido do IPHAN, que evita enviar técnicos para o continente africano desde o início da epidemia de ébola.

Nova fonte de rendimento

Mesmo com as dificuldades, a prefeitura de Porto Novo antevê a possibilidade de viabilizar uma fonte de rendimento para o país, por meio do turismo histórico. "A cidade de Porto Novo tem três arquiteturas gerais: vernácula, colonial e afro-brasileira. Estas arquiteturas, particularmente a afro-brasileira, despertam o interesse de muitas pessoas que vêm de outros países para visitar", diz Gbénahou.

Restaurierungskurs Benin
Jovens do Liceu Técnico de Porto Novo participam da formaçãoFoto: Roch Kiki

Alexandre Mascarenhas vê também oportunidade de novos trabalhos para os jovens: "A gente sabe que hoje, na África em geral, é muito complicado encontrar trabalho. Então, há a probabilidade de que alguns desses alunos venham a atuar em empresas na área de construção. A gente espera também que eles sejam absorvidos pela prefeitura em programas de restauração destas edificações".

Entretanto, na turma atual, não há nenhum jovem agudá. Mascarenhas acredita que a ausência se deve ao processo de seleção e à falta de informação entre os agudás sobre o curso. Para ele, a exigência de que os integrantes fossem provenientes do Liceu Técnico de Porto Novo e apresentassem boas notas pode ter beneficiado jovens provenientes de famílias privilegiadas: aqueles que, em geral, conseguem ingressar no Liceu.

"É uma pena não conseguir alcançar a população diretamente. Mas, de certa forma, os proprietários dos casarões, que em sua maioria são as famílias agudás, já foram envolvidos no processo e estão a acompanhar as ações", observa.

A cultura agudá

Além dos antigos escravos, também fazem parte deste grupo étnico os descendentes de portugueses e brasileiros e dos traficantes de escravos que residiam na costa do Benin, uma das principais saídas de navios negreiros para as Américas. A região, onde hoje se encontram também Togo e Nigéria, era conhecida na época como Costa dos Escravos.

Estes grupos sociais aparentemente conflitantes se uniram em uma só identidade cultural, como conta o antropólogo Milton Guran, pesquisador do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense, no Brasil: "Esses antigos escravos puderam reconstruir uma identidade social com a memória do tempo vivido no Brasil que os equiparassem aos próprios traficantes que os tinham vendido. E, a partir desta nova identidade, eles puderam exercer sua nova cidadania integralmente. Superando, assim, o estigma da escravidão".

Zentralmoschee in Porto-Novo
Mesquita central é uma das construções típicas da arquitetura agudá na capitalFoto: Roch Kiki

Os hábitos ocidentais foram um dos traços marcantes da identidade dos ex-escravos que retornaram do Brasil e possibilitaram que conquistassem um status diferenciado na sociedade. "O modelo cultural deles não era os outros escravos. Era sim os senhores. Eles voltaram bem vestidos, falando uma língua europeia, comendo com garfo e faca, em mesa com cadeira, dormindo em cama", explica Guran.

Novas gerações

A relação com o passado nem sempre é fácil. Quase dois séculos depois, a memória do estigma da escravidão ainda se faz presente na vida dos jovens que carregam o sobrenome português, característica deste grupo.

Isabel Aguiar, professora de português que deu aulas por três anos em uma universidade de Benin, aponta para a complexidade da questão: "As famílias agudás, em Porto Novo, até alguns anos atrás, tinham um status elevadíssimo. Ao mesmo tempo, quem tem esse status, que está diminuindo, porque diminui o poder aquisitivo de algumas dessas famílias, tem todo o estigma da escravidão que ainda é muito presente no país. Ao ponto de pai querer ir na escola, porque o professor comentou que o filho dele com aquele sobrenome era descendente de escravo".

Além da herança da escravidão e dos sobrenomes de origem portuguesa, manifestações culturais como a Festa do Senhor do Bonfim, e a celebração da Burrinha, similar à tradição brasileira Bumba-meu-boi, são transmitidas aos mais jovens.

Zentralmoschee in Porto-Novo Benin
Detalhe da fachada posterior da mesquita de Porto NovoFoto: Roch Kiki

Selma Gomes, agudá de Benin, faz parte de uma família onde a tradição da Burrinha é muito presente: "Eu aprendi principalmente com meu pai. Aprendi muita música e dança, e também a tocar tambor." Para ela, os jovens tentam manter vivas as tradições: "Os jovens agudás sempre buscam conhecer a cultura, para que ela não se perca. Porque apenas uma pequena parcela da população do Benin faz parte desta cultura. Os jovens tentam mantê-la viva."

Segundo Isabel Aguiar, a preservação da cultura agudá é dificultada também pela educação fornecida nas escolas. "Na maior parte das vezes, a complexidade das relações que se deram no período pré-colonial do Benin não é bem explorada no ensino da História. Ela se resume ao tráfego negreiro, às relações de escravo e senhor, sem falar destas contribuições culturais". Para ela, também contribui para a perda cultural o fato de as crianças permanecerem menos tempo com a família, sem ter assim oportunidade de aprender com seus pais e avós.

Busca por origens

Restaurierungskurs Benin - Yassin da Glória
Yassin da Glória busca no Brasil mais informações sobre seu antepassado, Daniel da GlóriaFoto: privat

A busca pela preservação da cultura faz parte também da vida de outro jovem agudá, Yassin da Glória. Há gerações que a sua família busca resguardar a memória do ancestral Daniel da Glória, africano de origem nagô. O nome veio da senhora Maria da Glória, a antiga proprietária do então escravo no Brasil. Após comprar a liberdade, Daniel retornou ao Benin, para recomeçar a vida.

Agora, Yassin faz o caminho de volta. Aprendeu português e está no Brasil para cursar mestrado em Engenharia Civil. Ele pretende encontrar mais informações sobre sua origem. "Para mim, que tenho hoje essa oportunidade de estar no Brasil, será bom conhecer mais sobre cada evento da vida de Daniel. E por quê não depois escrever um livro? É isso que falta na nossa família. Escrever uma coisa assim e deixar para que as pessoas, meus filhos, meus netos poderem saber exatamente como foi a história."