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Pacientes psiquiátricos são reféns de impasse jurídico

Karina Gomes1 de agosto de 2014

Vulneráveis, esquecidos e com o estigma de criminosos, infratores com transtorno mental são vítimas de divergências entre Justiça e Saúde. Abordagem do tema está longe de focar no atendimento médico e na recuperação.

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Pacientes vivem atrás de grades no Hospital de Custódia de Belém, no ParáFoto: Luiz Silveira/Agência CNJ

Josiani V., de 36 anos, ficou isolada em uma cela por 45 dias no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico masculino de Manaus. A dona de casa acusada de tentativa de homicídio foi descoberta em setembro do ano passado entre os 27 internos da unidade durante inspeção do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Depois disso, juízes determinaram que ela recebesse tratamento psiquiátrico em um estabelecimento adequado. Mas, em apenas um mês, os autos de insanidade mental foram arquivados: um novo laudo médico apontou que a paciente não sofria de distúrbios psiquiátricos. Ela foi transferida para uma cadeia pública.

Assim como Josiani, pessoas com transtornos mentais que cometeram algum tipo de crime no Brasil são reféns das diferentes interpretações da legislação. Pela falta de coordenação entre órgãos oficiais, infratores com problemas psiquiátricos acabam recebendo tratamento degradante em prisões, manicômios judiciários e na rede pública de saúde.

O cumprimento de medidas de segurança – decisões judiciais que preveem internação a pacientes em conflito com a lei – é o principal ponto de divergência.

O CNJ recomenda aos juízes que a medida seja cumprida na rede pública de saúde, como em residências terapêuticas e unidades do Caps (Centros de Atenção Psicossocial). Mas, como o assunto é tratado no Código Penal e na Lei de Execuções Penais, a maioria dos magistrados interpreta que os pacientes devem ser enviados ao sistema penitenciário, em particular aos manicômios judiciários, espécies de hospital-presídio.

De forma generalizada, o tipo de tratamento dado a esses infratores não está condicionado ao quadro clínico deles, mas ao crime que cometeram.

"Temos uma cadeia que não funciona. Deveria prevalecer a lógica do atendimento médico, não a da periculosidade", defende Jefferson Aparecido Dias, integrante da Comissão sobre Pessoas com Transtorno Mental em Conflito com a Lei da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.

Reféns

Uma portaria publicada em janeiro pelo Ministério da Saúde estabelece que cabe ao Sistema Único de Saúde (SUS) acompanhar as medidas terapêuticas aplicadas a infratores com problemas psiquiátricos. O ministério admite que os manicômios judiciários são como prisões.

Maßregelvollzugsklinik in Bahia, Brasilien
Pátio do Hospital de Custódia e Tratamento de SalvadorFoto: Luiz Silveira/Agência CNJ

"O espaço não é adequado para a recuperação. Os pacientes ficam atrás das grades. Não são hospitais de fato. Na verdade, são nada mais do que uma unidade prisional", disse à DW Marden Marques, coordenador de Saúde no Sistema Prisional do Ministério da Saúde.

A adesão dos estados à nova política de tratamento a esses infratores, no entanto, é voluntária. Apenas Goiás e Minas Gerais possuem programas específicos para acompanhá-los. Rondônia, Espírito Santo e Maranhão estão começando a implementar medidas de humanização.

"A ideia é andar em consonância com a reforma psiquiátrica e extinguir aos poucos os espaços manicomiais. Essa política também inclui atender quem está no presídio", explica Marques.

Mesmo com a edição da portaria, o Brasil ainda está longe de oferecer atendimento humanizado a infratores em unidades de saúde. Segundo o CNJ, a rede pública de assistência mental oferece resistência em recebê-los.

"É difícil convencer a rede de saúde a tratar o paciente judiciário, especialmente os que cometeram crimes graves. Os profissionais que lidam com essas pessoas tentam de qualquer forma escapar dos loucos considerados 'piores'. A tendência é querer que essas pessoas fiquem no sistema prisional, especialmente nos manicômios judiciários", afirma o juiz Douglas Martins, supervisor do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do CNJ.

No início de maio, uma inspeção do órgão no Complexo Penitenciário da Papuda, no Distrito Federal, identificou um detento que come vidro e joga fezes nos demais presos. O rapaz com claros transtornos mentais já passou por vários exames, mas mesmo assim a perícia atesta que ele não possui problemas psiquiátricos. Ele permanece preso.

Segundo o Ministério da Saúde, é possível que "alguns profissionais" ofereçam resistência e, por isso, a equipe deve sensibilizá-los a atender o paciente judiciário de forma adequada.

Alternativas

Apesar da estrutura existente em Goiás e Minas Gerais para tratar loucos infratores no sistema de saúde, eles ainda dividem celas com presos comuns nos dois estados. Ao menos 104 pessoas que não podem aguardar a sentença em liberdade ou que desenvolveram transtornos psiquiátricos dentro da cadeia estão no sistema prisional mineiro. Em Goiás, são 24.

A ideia dos programas é ir na contramão dos manicômios judiciários e acompanhar a aplicação das medidas de segurança na rede de saúde. Goiás já extinguiu todas as unidades de custódia.

Mesmo que ainda não haja sentença, os pacientes são inseridos nos programas desde o início do processo judicial e são encaminhados a serviços públicos de saúde. Para os que estão atrás das grades, o tratamento ocorre dentro da prisão.

"A ação se orienta não pelo crime cometido, mas pela possibilidade de o paciente responder pelo ato que praticou em condições de ampliação de laços sociais, e não de restrição da sua liberdade", explica Fernanda Otoni, coordenadora do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) de Minas Gerais. O projeto, pioneiro no país, começou em 2000 em Belo Horizonte e foi ampliado para o interior mineiro dez anos depois.

O índice de reincidência entre os pacientes acompanhados em Minas é de 1,4% em crimes como furto, ameaça, roubo e participação no tráfico de drogas. Desde o início do programa, Goiás registrou apenas um caso de reincidência grave.

"Existe um pré-conceito de que o doente mental é perigoso e que, se ele cometeu um delito, tem de ser excluído do convívio social. Isso é uma falácia", opina Maria Aparecida Diniz, coordenadora do Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (Paili) de Goiás.

Segundo o defensor público Marcelo Carneiro Novaes, antes de ser infrator, o paciente em conflito com a lei tem todos os direitos previstos na lei de assistência mental.

"Na prática, o Judiciário usurpa e viola a lei nacional. Com a medida de segurança, o louco infrator precisa ser encaminhado para a rede pública de saúde. Esse é o entendimento mais coerente", defende.

Luta antimanicomial

Nos últimos 11 anos, o número de leitos em hospitais psiquiátricos caiu 44%. Atualmente, são 27.766 leitos no país, de acordo com o Ministério da Saúde.

Como parte da reforma psiquiátrica, o ministério decidiu reduzir as vagas nos hospitais especializados, devido ao estigma de precariedade dos antigos manicômios, e aumentou em cem vezes a capacidade dos Caps.

Para o médico Quirino Cordeiro, membro da Associação Brasileira de Psiquiatria, o governo federal tem uma política irresponsável nessa área. "Tem-se observado um fechamento indiscriminado de leitos em hospitais psiquiátricos sem se oferecer uma contrapartida para o tratamento extra-hospitalar. Em situações agudas a internação é extremamente necessária para a proteção do próprio paciente", avalia.

O Ministério da Saúde afirma que, nos Caps, o paciente recebe "atendimento próximo da família, assistência médica e cuidado terapêutico" e o que o local prevê internação "quando há orientação médica".

Para o juiz Douglas Martins, do CNJ, as instituições envolvidas na questão precisam refletir sobre o tema. Segundo ele, quando o paciente cumpre a medida de segurança e a Justiça concede alvará para que ele volte para casa, a família pode não querer receber. Também é necessário suporte psicológico aos familiares.

O problema envolve de ponta a ponta Estado e sociedade. "Para se cumprir a Política Manicomial também é preciso mudar uma cultura. Quando não há família, a rede de assistência social precisa receber essas pessoas. Nada disso funciona bem. Essa é a realidade: não há estrutura para que a lei seja cumprida."