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Kershaw: Final da guerra foi o fim de uma era

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Faltou consenso nos últimos 60 anos na Alemanha sobre como lembrar a Segunda Guerra Mundial e como interpretar a própria História. DW-WORLD entrevistou Ian Kershaw, profundo conhecedor do assunto.

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Assinatura da capitulação alemã em BerlimFoto: Deutsches Historisches Museum

DW-WORLD: Que significado tem o 8 de maio de 1945 para a Alemanha?

Ian Kershaw: O 8 de maio foi o fim de uma era, o final das duas guerras mundiais. Embora a Europa estivesse em ruínas, o 8 de maio de 1945 possibilitou um novo começo na Alemanha e na Europa. Naturalmente que isto levou tempo. O acontecimento principal, no entanto, foi o fim da Segunda Guerra Mundial.

O 8 de maio muitas vezes foi considerado a "hora zero" da Alemanha. Muitos nazistas, entretanto, prosseguiram suas carreiras, apesar de ter mudado o sistema político. Podemos realmente falar de uma "hora zero"?

O conceito "hora zero" muitas vezes é interpretado de forma errada. Claro que nem tudo acabou a 8 de maio e começou de outra forma no dia seguinte. A história das pessoas prossegue, mesmo que a política sofra uma derrocada: sob o ponto de vista da sociedade, não houve uma "hora zero". E de que forma isto seria possível? A mentalidade das pessoas não muda de um dia para outro. Além disso, em muitos casos, o pessoal do serviço público continuou o mesmo.

Mesmo assim, o final da guerra estabeleceu um marco na história européia, especialmente na alemã. Foi a transição entre as duas metades do século passado. Embora a segunda metade do século 20 seja marcada pela guerra, o 8 de maio possibilitou à Alemanha a chance de um novo começo, mesmo que de forma diferente para os dois lados do país.

Pode-se comparar o 8 de maio de 1945 com algum outro importante acontecimento da história mundial?

A única analogia possível talvez fosse o fim da era napoleônica. 1815 foi, da mesma forma, um recomeço para a Europa. Só que a ruptura de 1945 foi maior que a de 1815. Não há comparação. Depois de uma guerra, são necessários alguns anos até que a situação se estabilize, mas as modificações na Europa pós-1945 foram muito maiores do que as que se seguiram a 1815.

Mudou ao longo dos anos na Alemanha a percepção em relação ao 8 de maio e à guerra?

60 Jahre Danach - Artikel - Ian Kershaw
Ian KershawFoto: AP

Sem dúvida. Em 1945, muitos alemães achavam que o país estava ocupado e que eles próprios haviam sido derrotados. O historiador alemão Friedrich Meinecke descreve em seu livro Die deutsche Katastrophe (A Catástrofe Alemã, 1946) a derrota como uma tragédia acima de tudo para a Alemanha. Para as pessoas na época foi a maior calamidade.

Hoje, vemos que esta tragédia parece ter sido indispensável, pois só assim pôde-se romper com a enfeitiçada história alemã, que já havia começado muito antes de Hitler. Só assim puderam reconstruir o país e a sociedade, com valores completamente diferentes do sistema de Hitler.

Como mudou nos últimos 60 anos a percepção do Holocausto na Alemanha?

Nas décadas de 60 e 70, a opinião pública debateu pouco o Holocausto. Houve algumas obras científicas, mas pelo que sei não receberam muita atenção. Foi aceito que a Alemanha esteve envolvida em coisas terríveis. Mas não se estava disposto a investigar o papel do país ou da sociedade alemã nestes acontecimentos. A responsabilidade foi passada a Hitler e seu regime totalitário.

Como as pessoas voltaram a atenção para o acontecido?

Através de duas coisas: Por um lado, ao pesquisarem o cotidiano da guerra, os historiadores da década de 70 descobriram o envolvimento de grande parte da população com a política racista e anti-semita do regime nazista. Uma impressão maior ainda foi deixada por um filme de televisão− até meio banal − de 1979, intitulado Holocausto.

Holocaust - ein Medienereignis
Meryl Streep em 'Holocaust', de 1979Foto: SWR

O filme despertou o interesse da opinião pública alemã pelo acontecido com os judeus. Os jornais alemães, por exemplo, começaram a enfocar acontecimentos como a libertação do campo de concentração de Auschwitz apenas a partir da década de 80.

Desde esta época, cresceu o interesse pelo tema e a consciência de culpa. Provas disso são, por exemplo, trabalhos científicos, festividades ou o debate em torno do monumento ao Holocausto em Berlim. Não posso, entretanto, dizer se este interesse se manifesta principalmente na classe mais instruída ou na mídia ou se realmente está enraizado até nas camadas mais baixas da sociedade.

grandes diferenças na interpretação do que foi o Terceiro Reich e a Segunda Guerra Mundial entre alemães e não-alemães?

Não. A história da Alemanha entre 1871 e 1945 é a história mundial. Existe uma associação mundial de historiadores dentro e fora da Alemanha. Nós dividimos valores e interpretações semelhantes.

Teme-se que com o falecimento das testemunhas que vivenciaram a Segunda Guerra também morra o interesse pelo conflito. O senhor compartilha esta opinião?

Sessenta anos após o final da guerra, pode ser esta a última oportunidade de refletir em conjunto com os sobreviventes. O interesse da opinião pública parece saturado. Na Grã-Bretanha, os programas sobre a Segunda Guerra não têm mais tantos telespectadores como antigamente. Mas isto é muito natural. Mesmo assim, a importância da guerra, do Holocausto e da era nazista permanece.

Foi a mais dramática das tentativas de criar uma sociedade desumana. Enquanto os princípios humanitários continuarem sendo o fundamento social da Europa, não mudará a posição em relação a Hitler e à Segunda Guerra Mundial.

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Ian Kershaw, professor de história da Universidade de Sheffield, na Inglaterra, é especializado em Idade Média, mas passou a se interessar pela Alemanha hitlerista ao encontrar um incorrigível nazista na Baviera, nos anos 70. Escreveu uma biografia em dois volumes, com os títulos Hitler, 1899-1936: Hubris (traduzido no Brasil por Hitler - Um perfil do poder) e Hitler, 1936-1945: Nemesis.