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Heranças musicais africanas na Europa

Philipp Sandner / Cristiane Vieira Teixeira14 de setembro de 2014

Como viviam os africanos e as pessoas de ascendência africana na Europa, no início do século XX? Que heranças deixaram? Um historiador alemão de jazz reuniu gravações de som e imagens da época em 44 CDs e dois livros.

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Imagem retirada do livro "Black Europe" ("Europa Negra") - sons e imagens de pessoas negras na Europa antes de 1927Foto: Sammlung Lotz

O hino nacional da África do Sul "Nkosi sikelel'i África" (ou "Deus abençoe a África", em português), é um dos símbolos mais conhecidos da independência do continente Africano.

Muitas pessoas associam a música ao ano de 1994, quando Nelson Mandela ganhou a eleição para Presidente e selou o fim do racista sistema apartheid.

Já na década de 1960, a Tanzânia e a Zâmbia fizeram desta canção seu hino nacional. E a história da música é ainda mais antiga.

Sol Plaatje
O ativista sul-africano dos direitos civis Sol PlaatjeFoto: Sammlung Lotz

Uma das gravações tem mais de 90 anos de idade! O ativista dos direitos civis sul-africano Sol Plaatje tocou-a em 1923, em Londres.

Já no início do século XIX, pessoas de ascendência africana faziam gravações de som na Europa. Naquela época, a maioria dos países africanos eram colônias de Grã-Bretanha, França, Portugal ou Alemanha.

Acervo reúne relíquias

Agora, o cientista alemão e historiador do jazz, Rainer Lotz, reuniu os antigos registros. Lotz, de 77 anos, é um ávido fã de jazz e se perguntou: "Como a música americana - ou seja, o blues e o jazz – teve um sucesso fenomenal no mundo? Como foi possível que pessoas de Vladivostok a Buenos Aires rapidamente começassem a tocar jazz e, em parte, também fazer gravações?"

Uma resposta está nas novas possibilidades das modernas técnicas de gravação que, naquela época, ainda engatinhavam. Também a liberdade de viajar na Europa no início do século XX, trouxe muitos músicos para a Europa. Lotz recolheu muitas horas de música e gravações de som de 1900 a 1928. O resultado: uma caixa com 44 CDs e dois livros, chamada "Black Europe", ou "Europa Negra".

O material inclui gravações de músicos de jazz norte-americanos com raízes africanas, bem como gravações de africanos na Europa. Elas foram feitas numa época em que o microfone ainda não havia sido inventado. As pessoas usaram o primeiro aparelho de gravação de som: o fonógrafo, uma invenção do americano Thomas Edison.

Auszug aus dem Buch "Black Europe. Sounds and Images of Black People in Europe pre-1927"
No início do século XX, cilindros de cera eram usados para gravar as músicas. Esta é também a imagem da capa do livro "Black Europe" ("Europa Negra")Foto: Sammlung Lotz

Quem quisesse fazer uma gravação, tinha que cantar ou falar em um funil. Uma agulha registrava as ondas sonoras em um cilindro revestido com cera. Estes cilindros de cera são muito sensíveis e devem ser armazenados com muito cuidado, diz a arquivista berlinense Ricarda Kopal.

As temperaturas de armazenamento não podem exceder os 20 graus. Por isso, acrescenta, "os cilindros de cera são normalmente armazenados em recipientes de papelão, que são forrados internamente com lã. Assim, eles devem ser armazenados completamente secos para evitar que o mofo se forme."

Exposição Universal de 1900

Auszug aus dem Buch "Black Europe. Sounds and Images of Black People in Europe pre-1927"
Cartão-postal mostra a entrada da Exposição Universal de 1900, em Paris, na FrançaFoto: Sammlung Lotz

Algumas das gravações mais antigas da coleção são da Exposição Universal de 1900, em Paris. Nela, vários países apresentaram os últimos desenvolvimentos técnicos. O país anfitrião, França, abriu nesta ocasião, a rede subterrânea de metrô de Paris. A França aproveitou também para apresentar as suas colónias.

Nas chamadas "aldeias negras", a França colocou os nativos de suas possessões africanas em exposição, que lá deveriam mostrar seu cotidiano. A França trouxe de barco do Madagáscar pessoas para apresentar músicas e danças.

Os cientistas registraram os timbres desconhecidos. Em algumas músicas, ouve-se os sons de Valihas malgaxes, uma espécie de cítara típica do país, e uma pequena flauta.

"Apenas quatro anos antes, a França havia anexado o Madagáscar, deposto a rainha e montado o seu sistema colonial lá. Esta exposição mundial também serviu para mostrar aos compatriotas franceses e ao mundo: vejam que grande potência colonial somos", revela Rainer Lotz.

Africanos em exposição

Auszug aus dem Buch "Black Europe. Sounds and Images of Black People in Europe pre-1927"
Cartão-postal mostra dois atores do Corno de África, conhecidos como Kadica e Elmi, que participaram de "zoos humanos" na Europa, a partir de 1905Foto: Sammlung Lotz

Na Europa, eram frequentes as apresentações que consistiam em mostrar a vida dos africanos. Essas exibições de pessoas foram chamadas de "Völkerschauen", na Alemanha, (ou "zoo humano", em português), explica Lotz. E não sem razão: às vezes, essas pessoas eram presas em gaiolas, como animais.

Os organizadores geralmente tinham por objetivo apresentar a África como um continente de "selvagens e não-civilizados". Os chamados "europeus civilizados" queriam ver como os africanos viviam em cabanas, vestindo apenas uma tanga. Havia também shows de entretenimento em que os africanos desempenharam um papel importante. Estes atraíam multidões.

A etnóloga de Colônia, Marianne Bechhaus-Gerst, explica que "as pessoas tinham gosto em ver o supostamente exótico". Especialmente em tempos em que a Alemanha ainda era muito fechada, "também o erotismo era um aspecto importante, que trazia dinheiro aos organizadores dos 'zoos humanos' e de apresentações de música", diz.

Os telespectadores consideravam particularmente exóticos os chamados pigmeus, ou anões. Eles despertavam o interesse de pesquisadores e homens de negócios. Assim, o coronel britânico James Harrison trouxe, em 1905, seis pessoas da região congolesa de Ituri para Londres. Os quatro homens - Matuko, Mafutamengi, Mongonga e Chief Bokani - e duas mulheres - Kuaki e Omariapi - provavelmente pertenciam ao grupo étnico do Aka.

Harrison falavam simplesmente de pigmeus. Ele trouxe os congoleses ao palco do hipódromo de Londres – num cenário de cabanas de palha. É bem possível que ele tentasse, assim, demonstrar uma suposta inferioridade dos africanos perante a civilização ocidental.

Harrison foi considerado um apoiador do rei belga Leopoldo, que havia declarado o Congo a sua propriedade privada e explorado impiedosamente a população local.

Auszug aus dem Buch "Black Europe. Sounds and Images of Black People in Europe pre-1927"
Uma fotomontagem, provavelmente feita no início do século XX, mostra um africano trajando terno preto, em frente ao Portão de Brandemburgo, em BerlimFoto: Sammlung Lotz

Os timbres do Aka

As músicas do grupo étnico Aka são muito complexas. Algumas gravações do ano de 1905 foram obtidas. Elas provavelmente surgiram como souvenirs para os convidados das exposições.

Uma delas tem 109 anos de idade. É, assim, provavelmente a mais antiga gravação comercial de africanos na Europa. Nos dois anos e meio que o chefe Bokani e seus compatriotas passaram na Inglaterra, eles se apresentaram diante de mais de um milhão de pessoas provavelmente.

Negociantes como o coronel Harrison, mas também africanos e afro-americanos se beneficiaram de tais manifestações, enfatiza a etnóloga Marianne Bechhaus-Gerst. Não só se apresentavam por toda a Europa: era uma oportunidade de ganhar dinheiro, garante.

"Havia, sim, contratos que deixavam bem claro o que tinham que fazer e o quanto eles deveriam receber por isso. Isto lhes dava um certo poder: se os organizadores não cumprissem os contratos, os contratados entraram em greve", avalia.

Houve casos em que os artistas conseguiram prevalecer contra seus empregadores no tribunal, diz Bechhaus-Gerst. O togolês J.C. Bruce e o seu grupo se tornaram autónomos, por exemplo. Durante anos, eles excursionaram pela Europa.

Mas os africanos não vinham apenas para os "zoos humanos" ou participações em eventos de música e dança.

[No title]

Josiah Jesse Ransome-Kuti era um clérigo anglicano do estado nigeriano de Ogun. Em 1922, viajou para Londres – tinha na época 67 anos de idade – para gravar músicas eclesiásticas em Yorubá, que compôs para sua igreja. Além disso, ele gravou uma canção popular de composição própria.

Ainda hoje, os cristãos nigerianos cantam os corais de Ransome-Kuti. A música deve desempenhar um papel também na vida de seus descendentes: um dos netos de Ransome-Kuti foi o mundialmente famoso saxofonista nigeriano Fela Kuti, o fundador do Afrobeat, um estilo de música funk da década de 1970. Assim, os traços das antigas gravações sempre conduzem os trabalhos recentes.

Valor histórico do acervo

Graças a Rainer Lotz e ao selo "Bear Family Records", que retrabalhou as antigas gravações e imagens meticulosa e amorosamente, ainda podemos ouví-las - algumas das quais com mais de cem anos de idade. Este é um enorme trabalho de arquivo.

A equipe do chefe do selo, Richard Weize, não poupou despesas ou esforços."Eu sempre produzo primeiro um bom produto e só então me pergunto se é possível vendê-lo. Quando entro em um projeto, ele deve ser razoavelmente longe de qualquer realidade", revela Weize que também se surpreendeu com o escopo do projeto.

Inicialmente, ele esperava três ou quatro CDs, diz. O resultado foram, no entanto, 44 CDs e dois livros em formato grande. A extensa e diversificada coleção é provavelmente mais uma obra de referência para as bibliotecas do que um produto para um consumidor "normal".

Algumas das gravações têm, sobretudo, um valor histórico. Outras também podem ser bem ouvidas um século mais tarde. Em pleno século XXI, o pedido da bênção de Deus para a África, feito pelo ativista sul-africano dos direitos civis, Sol Plaatje, em 1923, ainda não perdeu a atualidade.

J.J. Ransome-Kuti
O livro "Black Europe" ("Europa Negra") traz também informações sobre o clérigo nigeriano Ransome-Kuti que gravou algumas músicas pelo selo britânico Zonophone, em 1922Foto: Sammlung Lotz