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'Escravidão branca'

22 de novembro de 2011

Parte importante da história da imigração no Brasil passa a fazer parte do acervo do Museu BallinStadt de Hamburgo, um dos mais importantes do mundo. Mostra foca migração promovida pela companhia Vergueiro em São Paulo.

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Esperança de futuro melhor levou europeus a emigrarem para Novo Mundo
Esperança de futuro melhor levou europeus a emigrarem para Novo MundoFoto: Sammlung Link to Your Roots

Produzida pelo banco de dados Carlota Schmidt Memorial Center e pelo Instituto Martius Staden, a mostra "Weisse Sklaverei" in Brasilien – Auswanderung in die Abhängigkeit ("Escravidão branca" no Brasil – Emigração rumo à dependência), organizada pelo pesquisador brasileiro José Eduardo Heflinger Júnior, foi inaugurada no início de novembro no Museu da Emigração BallinStadt de Hamburgo.

Em 2012, a mostra passará a fazer parte da exposição permanente do museu hamburguês, que conta a trajetória de mais de 5 milhões de pessoas que deixaram o porto de Hamburgo em direção ao Novo Mundo.

Uma delas foi Catherina Drenkhan, uma garota do estado alemão de Schleswig-Holstein, que em 1851 dera a luz a uma filha de mesmo nome, fruto de uma relação com um soldado prussiano. A família descontente expulsou-a de casa e ela acabou por aceitar o convite de um agente de emigração para ir ao Brasil, conta o pesquisador Heflinger Júnior.

Um ano depois de sua chegada, ela contraiu febre amarela e faleceu, deixando a filha (também chamada Catherina Drenkhan) com apenas um ano e meio de idade. O comendador José Vergueiro, diretor da companhia de emigração Vergueiro & Cia. e filho do senador Vergueiro, proprietário da Fazenda Ibicaba, adotou a menina, cuja primeira filha viria a se chamar Carlota Schmidt.

Auxiliada por uma preceptora alemã, Carlota Schmidt escreveu suas recordações de infância num diário. Nesses documentos, que hoje pertencem ao Carlota Schmidt Memorial Center, ela descreve o relacionamento entre os fazendeiros (seus avós adotivos), os escravos africanos e os imigrantes alemães, suíços, portugueses e italianos.

Carlota Schmidt Memorial Center abriga banco de dados sobre imigração pelo sistema de parceria
Carlota Schmidt Memorial Center abriga banco de dados sobre imigração pelo sistema de parceriaFoto: Carlota Schmidt Memorial Center

Trata-se de uma peça valiosa para a história da migração europeia no Brasil, acresce o pesquisador. Um exemplar da obra Recordações de Infância de Carlota Schmidt na Ibicaba foi incorporado agora à biblioteca da mostra permanente do Museu da Emigração BallinStadt, intitulada Auswanderung nach Brasilien über das Halbpachtsystem (Emigração ao Brasil pelo Sistema de Parceria).

A tradução e editoração da obra escrita em gótico alemão foi organizada por Heflinger Júnior. Autor de 19 livros, o pesquisador de Limeira, São Paulo, já se dedica há 27 anos ao estudo de documentos históricos alusivos à imigração europeia ao Brasil que ocorreu pelo chamado sistema de parceria (sistema baseado na divisão da receita da colheita entre o proprietário da terra e o colono, após o pagamento das dívidas do colono com o proprietário).

A Deutsche Welle conversou com Heflinger Júnior sobre seu trabalho e sobre a atual exposição.

Deutsche Welle: O que pode ser visto na mostra em Hamburgo?

José Eduardo Heflinger Júnior: A exposição resgata a experiência imigratória baseada no sistema de parceria promovida pelo senador Nicolau Pereira de Campos Vergueiro.

Essa modalidade de imigração teve início na Fazenda Ibicaba (Limeira/Cordeirópolis), a partir de 1841. A Vergueiro & Cia. mantinha um escritório em Hamburgo e agentes de emigração em Portugal, Suíça e Alemanha. A empresa dirigida pelo senador Vergueiro e seus filhos repassou num período de dez anos aproximadamente 60 mil imigrantes, que foram contratados por fazendeiros da província de São Paulo para trabalhar na cultura do café. Essa iniciativa foi responsável pela substituição do braço escravo pelo livre e pelo desenvolvimento do estado de São Paulo e do Brasil.

José Eduardo Heflinger, na Universidade de Hamburgo
José Eduardo Heflinger, na Universidade de HamburgoFoto: Carlota Schmidt Memorial Center

A exposição permanente patrocinada pelo Instituto Robert Bosch e pela Fundação Visconde de Porto Seguro abriga painéis; réplicas de livros de registros do século 19, produzidos no gótico alemão, francês e português arcaico; um banco de documentos originais de época; e uma videoteca contendo seis documentários alusivos aos escravos africanos, aos emigrantes portugueses, alemães, suíços e à Revolta dos Colonos na Fazenda Ibicaba, registrando a decadência do sistema de parceria.

Reconhecendo a importância e a raridade da mostra, o Instituto Martius Staden e o Carlota Schmidt Memorial Center deverão editar uma versão português/alemão da exposição para que os brasileiros possam ter acesso às informações concernentes à imigração europeia pelo sistema de parceria. Essa exposição itinerante percorrerá os estados brasileiros a partir do próximo ano.

A libertação dos escravos aconteceu somente quase 50 anos depois que esses primeiros imigrantes chegaram ao Brasil. Por que eles foram necessários?

Eu não diria que essa idiotice maquiavélica foi necessária, salvo na concepção de mentes que se afogavam na cobiça. A partir da assinatura do Tratado de Aberdeen, em 8 de agosto de 1845, os ingleses passaram a fiscalizar a costa brasileira com maior rigor. Essa ação provocou uma alta nos preços e dificuldade na obtenção de escravos.

Mesmo depois da chegada dos imigrantes europeus, os africanos ocuparam uma posição de destaque no que tange ao trato das lavouras da cana de açúcar e do café. Somente depois da abolição é que essa história se modificou.

O negro ganhou a liberdade, mas ficou à margem da sociedade, sofrendo discriminação e recebendo um tratamento desrespeitoso. Essa afirmação é respaldada por farto documental, principalmente os processos criminais guardados nos arquivos da Justiça. Ainda restam peças documentais valiosas nesses acervos, apesar dos atos inconsequentes do "grande" Rui Barbosa. Creio que o leitor não ignora que o Águia de Haia ordenou a incineração dos documentos que registravam essa prática condenável e vergonhosa assumida no Brasil Imperial.

Escravos em plantação de café
Escravos em plantação de caféFoto: Carlota Schmidt Memorial Center

Como já registramos em nossas obras, a partir de 1840, o café passou a ser encarado pelos fazendeiros como a grande promessa de sucesso. O aumento da produção compelia os produtores ávidos por riqueza a empregar um número maior de escravos africanos, não só para cuidar das roças de café e cana, mas também para auxiliar as tropas de transporte para as tulhas e portos.

Por essa razão, foram importados mais de 30 mil escravos por ano, no período compreendido entre 1840 e 1850. A partir de 1851, exceto pelo tráfico ilegal, houve um decréscimo nas negociações e o preço do escravo subiu significativamente. Essa realidade "obrigou" os fazendeiros a procurar braços na Europa, aproveitando-se da situação precária de algumas regiões do Velho Mundo.

Por que o sistema de parceria não funcionou?

A primeira experiência de implantação de colônia de imigrantes europeus pelo sistema de parceria foi empreendida em 1841 pelo senador Vergueiro em sua Fazenda Ibicaba. A colônia desmantelou-se porque Vergueiro se envolveu em problemas com o governo imperial. Em 1846, a situação modificou-se e o senador Vergueiro foi convidado pelo presidente da província de São Paulo, em nome do governo imperial, para receber colonos. Ele aceitou o convite para empreender essas importações e associou-se aos seus filhos, constituindo a Sociedade Vergueiro & Cia.

Retrato do senador Vergueiro, em 1851
Retrato do senador Vergueiro, em 1851Foto: Carlota Schmidt Memorial Center

A carência de trabalho nos estados germânicos provocava miséria e fome. A proposta da empresa do senador instilou a esperança de um futuro melhor. A Casa Vergueiro concedeu financiamento, garantiu o sustento e anunciou que o trabalho seria moderado.

Os germânicos que inauguraram a famosa e polêmica "Colônia Senador Vergueiro" eram da região da Renânia-Hessen, do Palatinado e do Holstein. Mainz foi a cidade escolhida para a reunião de todos os desejosos de emigrar. Eles partiram da Renânia em direção a Hamburgo, no fim do mês de março de 1847. Ali, 29 emigrantes do Holstein uniram-se ao grupo, que embarcou para a província de São Paulo. Em junho de 1847, 422 colonos chegaram a Santos, 21 ficaram naquela cidade portuária e 401 foram conduzidos à Fazenda Ibicaba.

Depois de permanecerem quatro anos na Colônia Senador Vergueiro, alguns já haviam liquidado suas dívidas. Preller, o agente em Mainz, escreveu ao Sr. Valentim, diretor de uma companhia de navegação de Hamburgo, informando que as cartas positivas enviadas pelos colonos haviam facilitado o engajamento de mais candidatos.

A imprensa, autoridades e diplomatas germânicos expressaram opiniões contraditórias sobre o assunto. Muitos acreditavam que o sistema de parceria poderia transformar pobres agricultores em pequenos proprietários, mas os críticos insistiam em conotá-lo como uma escravidão branca.

Embarque em um dos navios da Hamburg Amerika Linie
Embarque em um dos navios da Hamburg Amerika LinieFoto: Sammlung Link to Your Roots

Houve revoltas?

Sim, a Revolta dos Colonos na Ibicaba. Em agosto de 1854, Thomas Davatz, suíço de Fanas, resolveu emigrar para o Brasil. Ele colaborou com o Sr. Paravicini, agente de emigração responsável pelo engajamento. Além da aldeia de Fanas, outras municipalidades do Vale de Prätigau incumbiram Davatz de enviar um relatório sobre as condições dos colonos no Brasil. Em janeiro de 1856, Davatz escreveu seu relatório às autoridades suíças criticando o tratamento concedido aos colonos.

Em meados de fevereiro de 1857, chegaram à Ibicaba os enviados do governo suíço, o Dr. Heusser e o Sr. Diethelm. Eles procederam a uma avaliação em 29 colônias de parceria da Província de São Paulo que abrigavam cidadãos suíços, contratados pela Vergueiro e Cia. Depois de reparar algumas irregularidades apontadas, Vergueiro afirmou que os colonos deveriam trabalhar com mais responsabilidade e exigiu que alguns deixassem a Colônia da Fazenda Ibicaba, inclusive Thomas Davatz.

Esse clima de tensão repercutiu na gestão e continuidade do sistema de parceria e contribuiu para a sua decadência. A rebelião fomentou matérias positivas e negativas, ocupando espaço nas primeiras páginas dos jornais suíços e germânicos. Devido aos problemas ocorridos nas colônias de parceria e sua repercussão na Europa, esse sistema foi sendo gradualmente abandonado, chegando quase a desaparecer na década de 1870.

Essa iniciativa do senador Vergueiro colaborou para que os fazendeiros da província de São Paulo acreditassem na substituição da mão de obra escrava pela livre, importando grande quantidade de italianos para a lavoura do café, principalmente no final do século 19.

O que aconteceu aos colonos que se revoltaram? Qual a sua contribuição para o desenvolvimento do Brasil?

Creio que já mencionei algo sobre o destino dos líderes. No entanto, a revolta e suas repercussões tiveram efeitos interessantes no aprendizado, ou melhor, no amadurecimento do relacionamento entre as classes, na movimentação dos legisladores no sentido de adequar as leis do país para que a imigração europeia pudesse ter continuidade, em que pese a submissão dos deputados e senadores aos barões do café e da Igreja Católica, cuja influência era indiscutível nos destinos do país. Em minha modesta opinião, o balanço de toda essa problemática foi positivo.

Descendentes de imigrantes de Schleswig-Holstein
Descendentes de imigrantes de Schleswig-HolsteinFoto: Carlota Schmidt Memorial Center

Apesar das dificuldades e da luta pelos interesses entre as classes, o Brasil continuou a importar imigrantes que contribuíram com o desenvolvimento do país em todos os sentidos e essa ação foi responsável pela "Libertação dos Escravos".

Qual o trabalho do Carlota Schmidt Memorial Center?

O Carlota Schmidt Memorial Center é um banco de dados que guarda documentos originais e cópias alusivas à imigração europeia pelo sistema de parceria. O banco é constituído de documentos e imagens captadas em arquivos particulares e oficiais do Brasil, da Alemanha, da Suíça, da Itália e da França.

Estamos empreendendo esforços para aquisição de uma área desmembrada de uma fazenda espetacular que mantém a sede, mata com macacos e tucanos, baias de cavalos, casas de colonos e um templo. Trata-se de uma fazenda que abrigou imigrantes alemães em meados do século 19. O espaço será utilizado para abrigar as atividades culturais e o acervo do Carlota Schmidt memorial Center. Se houver algum mecenas interessado, não fazemos questão de receber como doação, mas o próprio investidor pode adquirir a propriedade e fazer um contrato de cessão por cem anos, desde que no local continue a funcionar o Carlota Schmidt Memorial Center.

Entrevista: Carlos Albuquerque
Revisão: Alexandre Schossler