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Em dez anos, Tete poderá ser "barril de pólvora social"

5 de novembro de 2011

Opinião é do investigador Thomas Selemane, da ONG moçambicana Centro de Integridade Pública (CIP). Ele defende a renegociação "indispensável" dos chamados megaprojetos industriais. Oiça a primeira parte da entrevista.

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Thomas Selemane, do Centro de Integridade Pública (CIP), estudou as ligações entre os megaprojetos e a economia moçambicana
Thomas Selemane, do Centro de Integridade Pública (CIP), estudou as ligações entre os megaprojetos e a economia moçambicanaFoto: DW/Johannes Beck

Muitos consideram Moçambique o novo "Eldorado" em termos de recursos naturais. Porém, não é ouro que atrai os investidores – e sim carvão. Há poucos meses, a empresa brasileira Vale começou a extrair carvão em Moatize, na província de Tete no centro-norte de Moçambique.

Para saber se os chamados megaprojetos de exploração de recursos naturais em Moçambique podem ajudar a diminuir a pobreza no país, Johannes Beck, chefe da redação em Língua Portuguesa da DW, falou com Thomas Selemane, investigador do Centro de Integridade Pública (CIP), uma organização não governamental moçambicana.

Selemane é considerado um dos melhores peritos moçambicanos nesta área – e alertou para o fato de que a exploração de carvão em Tete pode transformar a região num "barril de pólvora social" nos próximos dez anos.

O motivo: um grande fluxo de trabalhadores locais que não encontram em Tete as oportunidades que imaginam com a exploração de carvão por grandes empresas internacionais.

Confira a primeira parte da entrevista, abaixo, e no áudio a seguir.

Deutsche Welle: Moçambique poderia se tornar independente das doações internacionais com a exploração destes recursos minerais [a exemplo do carvão da bacia de Moatize]?

Tomás Selemane: Eu acho que sim. O orçamento de Estado pode deixar de depender da ajuda externa se forem tomadas medidas de garantia de que os grandes projetos paguem mais impostos e que a riqueza gerada pelas grandes multinacionais que estão em Moçambique seja, o máximo possível, retida na economia nacional.

Infelizmente, até agora, não há ações concretas neste sentido. É verdade que a lei fiscal foi modificada em 2007 e os incentivos foram reduzidos. Mas o principal é que os grandes projetos, os mais famosos, os maiores, foram negociados antes de 2007. O que quer dizer que a lei não se aplica àqueles projetos – só se aplica aos que vierem.

DW: Significa que Moçambique deveria renegociar estes contratos, que já fechou com as empresas – os donos destes megaprojetos?

TS: Sim, deveria renegociar [os megaprojetos] – é o que toda a gente acha, inclusive dentro do governo. O próprio governador do Banco Central [moçambicano] é de opinião que é necessário renegociar os contratos com os megaprojetos, porque ele entende que a deterioração da balança de pagamentos de Moçambique tem piorado devido a esta situação. Há também, mais recentemente, por parte do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial sinais claros de que são a favor da renegociação dos contratos.

Selemane foi convidado especial da reunião anual do Comité Coordenador Moçambique Alemanha (KKM), em Bielefeld, em finais de outubro
Selemane foi convidado especial da reunião anual do Comité Coordenador Moçambique Alemanha (KKM), em Bielefeld, em finais de outubroFoto: DW/Johannes Beck

É verdade que a renegociação em si não vai resolver o problema, mas é o primeiro passo necessário e indispensável para todo o resto que pode vir a acontecer.

DW: Quanto estas empresas [multinacionais] pagam em termos de impostos e de taxas alfandegárias?

TS: As emrpesas que operam neste momento têm taxas diferenciadas. Cada uma tem uma isenção diferente da outra. Mas, por exemplo, a SASOL [empresa petroquímica da África do Sul] tem uma isenção de 50% do IRPC (Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Colectivas) – paga só metade. Em vez de 32%, paga 16% [em impostos]. A [concessionária irlandesa] Kenmare das areias pesadas [do distrito nordestino] de Moma, também tem isenção de metade do imposto, paga apenas metade do que é devido.

E há também cálculos do Banco de Moçambique que indicam que são entre 300 a 400 milhões de dólares que se perdem por ano devido aos incentivos fiscais.

Significa que, se os contratos forem renegociados e a situação for alterada, a balança de pagamentos, o orçamento de Estado arrecadará imediatamente a seguir cerca de 400 milhões de dólares. Isso equivale a cerca de metade da ajuda externa.

DW: Como ficará a situação de Moçambique nos próximos dez anos? Será que a exploração do carvão de Tete – que começou agora em 2011 – terá contribuído, daqui a dez anos, para a melhoria das condições de vida dos moçambicanos?

TS: Daqui a dez anos, não sabemos exatamente. Mas os sinais que existem atualmente indicam que não. Os sinais que existem atualmente – por exemplo, no caso de Tete – são sinais de mais empobrecimento, de sobrecarga da máquina administrativa do Estado, de fraca capacidade de resposta do tecido económico local, de altos níveis de migração interna de outras províncias de Moçambique para Tete – e dos países vizinhos para Tete.

Isso gerou uma onda, um grande número de desempregados em Tete, porque as pessoas acreditam e têm na mente que Tete é o "Eldorado" e é a terra onde há todas as oportunidades de negócio, de emprego etc. Vão para lá – [mas] muitas delas não têm a devida formação, a devida qualificação. E chegam lá, afinal não há emprego, não têm o que fazer, não têm onde morar ou dormir.

A nível social, é um "barril de pólvora" que a qualquer momento pode explodir, porque a cada dia vem mais gente, mais gente à busca de oportunidades – e, afinal, não há oportunidades. Então, daqui a dez anos, se estes sinais não forem eliminados, se esta tendência não for corrigida, teremos uma situação bem pior.

DW: Como se explica este paradoxo? De um lado, há empresas como a multinacional australiana-britânica Riversdale, ou a Vale, do Brasil, que estão a investir mais de mil milhões de dólares na abertura das suas minas de carvão na província de Tete, o que é muito dinheiro para um país relativamente pobre como Moçambique. Do outro lado, não há melhoria em relação à pobreza. As pessoas continuam pobres. Como é possível?

TS: Isso é possível devido à natureza da economia – dominante, agora em Moçambique – de exploração de recursos naturais. Em qualquer parte do mundo, os grandes projetos, o grande capital, não é (sic) suposto gerar muitos postos de trabalho porque é intensivo em capital, utiliza menos pessoas e mais máquinas. E o número de pessoas que utiliza é, grosso modo, altamente qualificado – o que não há em Moçambique. Isso significa que não há criação de emprego, porque não é possível criar muitos empregos com aquele tipo de empreendimentos.

O que deveria ser feito – e não está a acontecer – é criar várias ligações entre os grandes empreendimentos e o resto da economia. Por exemplo: ligações tecnológicas, ou ligações de emprego, ou ligações de pequenas e médias empresas de fornecimento de bens e serviços. E essas pequenas e médias empresas iriam gerar mais postos de trabalho, e assim haveria transferência de ganhos, de dinheiro, das grandes empresas para as pequenas, através da compra de bens e serviços – e, assim, beneficiar-se-ia à outra camada da população que não está diretamente ligada ao grande empreendimento.

Isto não está a acontecer porque essas ligações não existem. Não há um tecido económico capaz de fornecer, por exemplo, bens alimentares aos grandes projetos, com a qualidade, a regularidade e a quantidade que as empresas necessitam.

DW: Portanto, as empresas o que fazem? Importam estes alimentos – carne, batatas, arroz – de outros países?

TS: Sim, importam de outros países, sobretudo da África do Sul. Isso não é culpa das empresas, apesar de haver uma percepção muito negativa para as empresas no terreno.

Por exemplo, em Tete, as pessoas têm uma percepção demasiado negativa das empresas porque [estas] não estão a dar emprego, pois não estão a comprar a alface que eles produzem, não compram o tomate que eles produzem.

Mas a questão é que a empresa não quer comprar dois quilos de tomate. Quer comprar duas toneladas por semana. E não há duas toneladas na qualidade que a empresa quer. A companhia quer, por exemplo, 1.500 quilos de frango por dia para as refeições que preparam. E não há esse frango. A única solução é recorrer ao mercado externo e trazer da África do Sul.

Recentemente, o governo obrigou as empresas a publicarem as oportunidades ou as necessidades de bens e serviços que tivessem primeiro nos jornais moçambicanos, para o empresariado local ter conhecimento disso. Mas o problema não está no fato de publicar-se primeiro em Moçambique e mais tarde no mercado exterior.

O problema está na falta de capacidade dos empresários moçambicanos, que não têm os benefícios que o Estado deu ao grande capital. Eles têm de pagar todos os impostos, não têm nenhuma isenção, não têm crédito bancário para produzir alface, tomate ou cebola, como o grande capital tem. Resultado: não há capacidade local para fazer face à demanda gerada pelos grandes projetos.

Nota da redação: a segunda parte da entrevista com Thomas Selemane fala sobre os efeitos da corrida ao carvão em Tete (confira também no link abaixo).

Autor: Johannes Beck
Edição: Renate Krieger / António Rocha