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HistóriaPortugal

"Eles lutavam pela independência, eu estava ali a mais"

22 de março de 2014

O português foi um dos militares que organizou o golpe de 25 de Abril. Na altura, a guerra colonial não tinha fim à vista. Por isso, o capitão decidiu deitar abaixo o regime em nome do prestígio das Forças Armadas.

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Foto: Imago

Antes de ir para a guerra na Guiné-Bissau, em 1969, o militar português Vasco Lourenço propôs um lema para o seu batalhão: "contrariados, mas vamos". Porém, o lema não foi aprovado.

Portugal combateu contra os movimentos de libertação africanos durante 13 anos. À semelhança do que acontecera na Índia portuguesa, o regime ditatorial parecia lutar teimosamente contra o inevitável – a concessão dos territórios no chamado Ultramar.

Muitos militares começam a conspirar, Vasco Lourenço era um deles. Para o então capitão, a solução para o conflito colonial só podia ser política. Mas, em 1973, o Governo português publicou um decreto que facilitava o acesso aos quadros permanentes das Forças Armadas, antevendo assim a continuação do esforço de guerra. Foi o princípio do fim.

Vasco Lourenço insurgiu-se contra o decreto. Começou a conspirar contra a ditadura fascista e convenceu os colegas de que era necessário recuperar o prestígio das Forças Armadas junto da população, que associava os militares ao regime ditatorial. Segundo Vasco Lourenço, só havia uma forma de fazer isso: derrubar o Governo.

DW África: Houve algum episódio que o tenha marcado particularmente quando combateu na Guiné-Bissau?

Vasco Lourenço (VL): Houve uma situação que alterou radicalmente a minha maneira de estar perante a guerra e perante o próprio país. Em determinado momento, descobri uma rede de informações no seio da população e de elementos de milícias guineenses que lutavam comigo em operações militares.

Denkmal Portugiesischer Soldaten in Guinea-Bissau
Na Guiné-Bissau, o batalhão de Vasco Lourenço escreveu num monumento: "Por aqui passámos, fazendo a guerra à procura da paz"Foto: Arquivo de Vasco Lourenço, in Do Interior da Revolução

Descobri que não havia nenhuma operação que fizéssemos em que eles não enviassem alguém ao Senegal, do outro lado da fronteira, a informar sobre o que íamos fazer. E descobri que o chefe dessa rede de informações, um milícia chamado Bori, tinha morrido numa emboscada, mesmo ao meu lado, cerca de quinze dias antes de eu descobrir a rede.

Isso chocou-me profundamente. Dei por mim a questionar-me e a pensar: "Que raio de guerra é esta em que um indivíduo acaba por ser morto pelos próprios companheiros? E aí, depois de alguma discussão com os meus alferes e furriéis sobre estes pontos de vista, cheguei à conclusão que quem estava certo eram eles, que estavam a lutar pela independência e pela liberdade.

Eu é que estava errado e estava ali a mais. É evidente que esta perceção não caiu do céu, já se vinha formando há bastante tempo. Mas é aí que se dá o clique e percebo que, de facto, a guerra é injusta e ilegítima. E que não posso participar mais naquela guerra.

DW África: Temia-se na Guiné-Bissau uma segunda Índia?

VL: Era diferente. Na Índia, era absolutamente utópico pensar em resistir naquelas condições à invasão que a União Indiana fez. Portanto, houve a derrota militar. Depois, houve a atitude miserável do Governo, que atacou os militares como bode expiatório do que se tinha passado.

Na Guiné-Bissau era diferente. Essa derrota militar não se daria como se deu na Índia, porque, em termos militares, o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) não tinha forças para derrotar daquela maneira as forças portuguesas.

Os guineenses tinham zonas que controlavam bastante bem e a que nós tínhamos imensa dificuldade em chegar, principalmente a partir do momento em que perdemos o apoio da Força Aérea. Mas eles também não conseguiam desalojar-nos da generalidade dos sítios onde estávamos. Portanto, a guerra, em termos militares, poder-se-ia ter prolongado bastante. Não, o problema era político.

DW África: E era uma teimosia…

VL: Era a política. Repare, nunca as Forças Armadas declararam a guerra em qualquer sítio do mundo. Quem declara a guerra são os políticos.

Portugal estava surdo, cego e mudo aos ventos da História. Achavam que estávamos orgulhosamente sós. Sós, mas orgulhosamente. Andávamos a defender os valores que eles achavam ser os valores da civilização cristã e ocidental. Estávamos sozinhos, porque éramos nós que determinávamos quais eram esses valores e assumíamo-nos, isolados, como os seus defensores.

Vasco Lourenço, o capitão que lutou pelo fim da guerra

A generalidade dos países ditos nossos aliados apoiava os nossos adversários, direta ou indiretamente. O próprio Papa [Paulo VI] recebeu os líderes dos movimentos de libertação. Portanto, a questão era essencialmente política. É isso, aliás, que está na origem do 25 de Abril.

DW África: Recorda-se de algum episódio que espelhe as dificuldades de organizar o golpe de Estado?

VL: Eu posso-lhe contar vários. Mas há um que mostra como tínhamos de ir tateando… Numa reunião clandestina [em dezembro de 1973], há um major de Cavalaria que se levanta e diz: "Eu ouvi aqui falar em direito à autodeterminação e independência… Mas isso é traição! Eu estou aqui a mais." Ficámos todos a olhar: "O que é isto? De onde caiu este pássaro?" Ele percebeu a situação dramática em que estava e, até pelas características dele, um homem extraordinariamente conservador, mas honesto de princípio, diz: "Eu dou a minha palavra de honra. Vou-me embora mas não conto nada do que aqui se passou".

Eu, que estava a moderar a reunião, olhei rapidamente para a malta e digo: "Podes ir embora, mas lembra-te da promessa que acabaste de fazer. Se abrires a boca, qualquer dia chocas aí com uma coisa fria ou com uma coisa quente sem saberes de onde vem. Vê lá o que é que vais fazer." Ele responde: "Não, eu dou a minha palavra de honra que não digo nada".

Isto mostra, de facto, as dificuldades que nós tivemos. Vamos discutindo a necessidade de um programa político…

Porträt Vasco Lourenço in Guinea-Bissau
Vasco Lourenço na Guiné-Bissau em 1969Foto: Arquivo de Vasco Lourenço, in Do Interior da Revolução

Temos a noção de que, quando fizermos um golpe de Estado, temos que apresentar um programa político, porque senão era só mudar as moscas e o resto ficava na mesma. Depois, escolhemos os generais Costa Gomes e Spínola para os convidar para liderarem o movimento – na condição de aceitarem o programa político que aprovámos – e, a seguir, dá-se o voto de confiança à comissão coordenadora e à direção (o Vítor Alves, o Otelo e eu próprio) para levarem à prática estas decisões.

Depois, sou posto fora do circuito, com uma situação rocambolesca, porque sou "raptado" pelos meus camaradas para demonstrarem que eu até queria ir, eles é que não me deixavam. Depois estive preso. Mas, de facto, é extraordinariamente complicado.

DW África: O que previa o programa político do Movimento dos Capitães no capítulo da descolonização?

VL: Direito à autodeterminação e independência. Isso depois é alterado no dia 25 de Abril à noite por pressão do general Spínola. É uma das falhas que o processo teve e que vem a ter consequências dramáticas para Portugal e para os portugueses.

Porque quando o programa é difundido e a nossa posição favorável à autodeterminação e independência dos povos, que tinha sido discutida com o próprio general Spínola, foi substituída por qualquer coisa do estilo "continuação de uma política ultramarina que leve à paz", muito "soft", os movimentos de libertação recrudesceram no esforço de guerra. E, entre o 25 de Abril e o fim da guerra, nós portugueses sofremos mais de 400 mortes.

DW África: Foi preso a 9 de março de 1974 e estava nos Açores quando foi o 25 de Abril. Como recebeu a notícia?

VL: Tinha combinado com o Otelo o envio de um telegrama em código para a sogra do Melo Antunes. Precisamente para despistar. E, no dia 24, foi recebido um telegrama com o código que eu tinha mandado ao Otelo "Tia Aurora segue Estados Unidos da América 25.0300. Um abraço, primo António".

Eu tinha-lhe mandado um texto que era "Tia Aurora segue". Depois, ele teria de pôr o local para onde seguiria um avião na data/hora que ele depois colocaria. "Um abraço, primo António", eu tinha posto. Portanto, o que ele preencheu foi só "Estados Unidos da América 25.0300", que era dia 25 às três da manhã.

"Eles lutavam pela independência, eu estava ali a mais", recorda Vasco Lourenço

DW África: O 25 de Abril correspondeu às suas expectativas?

VL: Dir-lhe-ei que sou otimista. Em termos militares, correspondeu. A minha reação imediata quando ouvi "Aqui Posto de Comando" no Rádio Clube Português [o anúncio dos militares revolucionários, que acabavam de assumir o controlo da rádio] foi "ganhámos!". Estava convencido que íamos ganhar.

Além disso, a reação de apoio que tivemos foi incomensuravelmente maior do que aquela de que estávamos à espera, o que nos influenciou decisivamente. Depois, na sua generalidade, as consequências corresponderam ao que eu ambicionava: a solução para a guerra colonial, o direito dos povos à autodeterminação e independência, e, em Portugal, a instalação de uma democracia política, a criação de uma sociedade muito mais justa, mais desenvolvida e o sair do isolamento internacional em que nós estávamos. Infelizmente, isso hoje está tudo a perder-se.

DW África: Ao olhar para o Portugal de hoje, foi esta a democracia que queria quando organizou o golpe de Estado?

VL: A de hoje não. Hoje somos um protetorado, um país ocupado por forças estrangeiras – pela Alemanha principalmente.

Depois, somos um país que foi assaltado por elementos que ocuparam o poder que se mostram como herdeiros dos elementos que foram vencidos no 25 de Abril e atuam como estando a querer vingar-se do que aconteceu no 25 de Abril. Estão a destruir tudo o que podem destruir que cheire a 25 de Abril. Estão a fazê-lo como capatazes das forças estrangeiras. Tem que ver com a situação internacional que se vive, onde o poder financeiro assume, de facto, o domínio da situação e está a destruir por completo tudo aquilo que foi alcançado pela luta dos cidadãos de todo o mundo nestes últimos 200 anos.

Hoje, em Portugal, temos a democracia formal, mas isso não chega. A Justiça não funciona. Todos os avanços que se deram na saúde, educação, segurança social estão a desaparecer. E, por isso mesmo, este não era de maneira nenhuma o país que eu ambicionava quando arranquei para o 25 de Abril.

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