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Lya Luft: "A cultura alemã me influenciou muito"

25 de dezembro de 2004

A escritora Lya Luft recebeu a DW-WORLD para uma conversa na sua casa, em Porto Alegre.

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Foto: Ed. Record.

Gaúcha de Santa Cruz do Sul e descendente de imigrantes alemães, Lya é uma das escritoras de maior sucesso do Brasil na atualidade. Perdas e ganhos vendeu mais de 425 mil exemplares, Pensar é transgredir já chegou aos 180 mil e sua coluna na Veja atinge um público em potencial de quatro milhões de leitores. A entrevista foi no pequeno escritório da escritora em sua casa, entre livros, fotos da família e CDs de Maria Bethânia, Elis Regina, Bach e Beethoven.

DW-WORLD: Tu podes falar um pouco sobre tua infância?

Brasilianische Schriftstellerin Lya Luft.
Foto: Ed. Record.

Lya Luft: Eu nasci em Santa Cruz do Sul, que sempre foi uma cidade típica de descendentes de imigrantes alemães. Meus antepassados de parte de pai e de mãe vieram naquelas primeiras levas, em 1825. Em geral eu digo que alemão fica bom depois de algumas gerações amaciando no Brasil. Passei a minha infância numa casa grande, com uma família divertida, mas com algumas coisas muito severas. Eu contestava isso e coloquei um pouco em dois ou três dos meus romances, principalmente na Asa esquerda do Anjo.

Na minha família se falava "nós, os alemães, e eles, os brasileiros". Isso era uma loucura, porque nós estávamos há gerações no Brasil. E como eu era uma menininha muito contestadora, um dia, com 7 ou 8 anos, numa Semana da Pátria, me dei conta: "Por que falam 'die Brasilianer und wir'?". Eu quero ser brasileira. E aí começou essa história – claro que naquela época eu não sabia das negras de origem africana vendendo acarajé nas ruas de Salvador –, mas eu digo que sou tão brasileira quanto qualquer negra de origem africana que vende acarajé nas ruas de Salvador. Talvez meus antepassados tenham vindo antes dos dela, então eu sou mais brasileira do que ela.

Eu nunca concordei com essa afirmação generalizada no Brasil que diz "vocês lá no Sul nem são bem brasileiros, vocês são meio europeus". Isso não me elogia em nada, eu não quero ser européia. Eu tenho o maior respeito pela cultura, pelo trabalho, pelas artes, pelas tradições de vários lugares na Europa, mas eu sou brasileira e quero gostar do Brasil.

Tua primeira língua foi o alemão?

Eu nasci em 1938 e logo em seguida começou a guerra. Em casa falávamos alemão, mas em seguida tive que falar português porque o alemão foi proibido. Minhas avós falavam alemão. Nenhuma conheceu a Alemanha. Eu me lembro delas sempre lendo. Isso é uma coisa legal que eu tenho delas – todo um imaginário dos contos de fadas.

Elas não conheceram a Alemanha, mas sempre tiveram essa imagem...

Era o lugar ideal. Principalmente para a minha avó materna. "Nós, os alemães..." Havia uma utopia e que tem a ver com uma certa arrogância européia, de um modo geral, que eu acho detestável.

Isso de elogiar os gaúchos dizendo que eles são europeus é tipicamente brasileiro.

Buchcover Buchtipp Lya Luft Die Frau auf der Klippe Verlag Clett-Cotta
Capa da tradução alemã de 'As Parceiras'

É um pouco de inferioridade que faz contraponto à arrogância européia. E com a ignorância européia e americana a nosso respeito, que é quase total. E um pouco... o sujeito que se sente inferior também ironiza. Há um desprezo, no fundo. Não é um elogio. É um distanciamento e uma coisa pejorativa. Por isso eu não gosto.

Eu me lembro de nós recebermos, na Deutsche Welle, e-mails de pessoas jovens falando em "Vaterland"...

Eu acho isso uma loucura. Então devem ir embora bem depressa. Isso é de uma pobreza... O sujeito que não consegue amar seu próprio país também não vai conseguir amar o Vaterland [pátria] utópico.

Tu achas que dá para dizer que há um culto à Alemanha entre os descendentes?

Eu nunca tinha ouvido falar nisso. Tu és a primeira pessoa que me diz isso. Meus filhos nem falam alemão. Fiz questão de cortar. Querem falar alemão? Vão aprender.

Mas há uma cultura alemã, como a Oktoberfest.

Claro, mas isso é simpático. Não devemos renegar as raízes. Isso é muito legal. É como você ter CTG [Centro de Tradições Gaúchas]. Mas daí a morar no Brasil, ser de várias gerações e falar em "Vaterland"... Acho isso um horror. Então todos os açorianos devem falar: "Oh, pátria portuguesa!". Eu sou uma libertária e de certa forma anarquista. Eu não gosto disso. Tenho muito respeito e há uma raiz minha germânica, ligada à cultura e à educação, que me agrada. Agora, há uma certa arrogância e um preconceito que me desagradam. E um sentimento excessivo e rígido de dever. Mas eu não sou por cortar raízes ou renegar tradições.

No Reunião de família, o professor, que era um cara muito frio, muito cruel, no começo ele era de origem alemã. Uns tipos que eu conheci na minha infância. Aí resolvi mudar. Eu não quero ser porta-voz dos descendentes de imigrantes alemães. Eu não quero ser porta-voz de nada. Eu quero ser completamente desligada. Eu quero minha liberdade para o exercício da minha arte, do meu trabalho.

A cultura alemã te influenciou?

Sim, muito. Essa é a parte que eu agradeço. Havia uma literatura alemã, francesa, italiana enorme na minha casa, além de brasileira e portuguesa. Li muito literatura alemã. Aos 11 anos decorava longos poemas de Goethe e Schiller. Para mim era natural. O que eu sempre combati é o seguinte: na Alemanha é melhor. Se na Alemanha é melhor, vá para lá. Eu não gosto das utopias que têm uma semente de arrogância. O Brasil tem muita coisa bagunçada, mas sempre que eu vou para o exterior e chego aqui, bom, esta é a minha terra. Eu gosto de morar aqui. E no Brasil, eu gosto de morar em Porto Alegre. E em Porto Alegre, eu gosto de morar nesta casa.

Quais teus autores favoritos em língua alemã?

Günter Grass. E Rilke. É um autor que leio sempre. Tenho uma edição de poemas em papel de seda que meu pai me deu quando eu era adolescente. Uma coisa que agrada tão imensamente por tanto tempo tem a ver com uma afinidade. É a coisa do "belo sinistro", o que tem muito a ver com a minha literatura. Tem muito a ver, também, com o "belo sinistro" dos contos de fada. Não quer dizer que Rilke tem a ver com os contos de fada. Os contos de fadas nórdicos são todos belos e terríveis. Os personagens sofrem muito, todo mundo tem que pagar um preço horroroso para ser feliz. Aquela coisa que é bonita, mas também meio ameaçadora. Tem um pouco desse "belo sinistro" em Rilke, também, e tem muito na minha literatura. Fecha uma coisa dele comigo que eu gosto imensamente.

Como está sendo a experiência de escrever para a "Veja"?

Muito boa. Quando a Veja me convidou, minha primeira atitude seria dizer não. É uma loucura, são um milhão de assinantes. Eu pensei: "Não, eu não vou querer esse compromisso a essa altura da minha vida". Conversei com meus filhos. Eles acharam graça. "Mãe, só tem duas razões para tu recusares. Uma é preguiça, a gente sabe que tu és meio preguiçosa. A segunda é covardia, e tu adoras um desafio, tu não és covarde."

É a primeira vez que uma mulher é colunista da Veja. Se eu recuso, vão dizer "tá vendo? Convidamos uma mulher e ela já quer cair fora". É a primeira vez que tem um colunista gaúcho, tirando o Luis Fernando Verissimo. Não, eu não podia cair fora. Nas duas primeiras colunas eu fiquei mais tensa. Veio aquela enxurrada de e-mails. Mas como o ser humano se acostuma com tudo, hoje faz parte do meu cotidiano.

Cite um livro em alemão que tu gostarias de traduzir.

Qualquer coisa mais recente do Günter Grass. Ele é muito trabalhoso, tem uma linguagem não muito simples e descreve usos, costumes e lugares da Prússia Oriental ou da Boêmia que mesmo meus amigos alemães desconhecem. Um campo vasto era uma tradução impossível. Ele é muito difícil de traduzir, mas maravilhosamente metafórico. É uma pessoa que eu gostaria de conhecer.