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Teatro

Soraia Vilela25 de setembro de 2008

Diretor alemão Christoph Schlingensief tematiza no palco seu próprio câncer de pulmão, retomando prática recorrente nas artes plásticas e no cinema: transformar a própria enfermidade no cerne de uma obra de arte.

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'Uma Igreja do Medo do Estranho em Mim': pulmão e medo radiografados no palcoFoto: picture-alliance/dpa

Considerado por algum tempo o enfant terrible do teatro alemão, Christoph Schlingensief há muito já se tornou parte do establishment da cena cultural do país. Encenou Parsifal em Bayreuth e recebeu o apoio necessário para levar adiante O Navio Fantasma em Manaus no ano passado. Hoje, tudo o que o diretor de 47 anos faz costuma "virar notícia".

Na Triennale de Duisburg, no oeste alemão, Schlingensief parece ter conseguido supreender mais uma vez. Não por ter apelado pelos artifícios iconoclastas que já haviam se transformado em tradição em sua própria trajetória, mas por encenar a própria biobrafia, ou, mais precisamente, seu câncer de pulmão.

Confissões de um enfermo

Ausstellungstipps vom 9.11.2007 Christoph Schlingensief in der Schweiz
Christoph Schlingensief: doença e medo levados aó públicoFoto: AP

Uma igreja do medo do estranho dentro de mim (Eine Kirche der Angst vor dem Fremden in mir) reúne liturgias variadas, um coro gospel e referências a outras religiões e rituais sincréticos. Além de um filme em super 8 do diretor quando criança, rodado por seu próprio pai, e um cenário em que as radiografias de seu pulmão estão expostas em grande formato.

Do "Oratório Fluxus" – que é como a mídia intitulou a peça devido às referências ao movimento artístico Fluxus, cujo ápice se deu nos anos 1960-70 – fazem parte ainda áudios gravados pelo próprio Schlingensief nos dias em que passou no hospital. O som ecoa pelo espaço transformado em "igreja".

O diretor foi operado, teve parte de seu pulmão extirpado devido ao câncer e passou por sessões de quimioterapia. Durante a estadia no hospital, gravou suas próprias reflexões centradas, acima de tudo, no medo da morte.

"O diagnóstico da doença e anotações em diário, histórias de família e férias no Mar do Norte, seqüências de filme e orações, pensamentos em torno do suicídio e desejo de redenção, Wagner, Mahler e rock'n'roll, Hölderlin, Kleis e Heiner Müller", é como o diário Frankfurter Allgemeine Zeitung (FAZ) descreve a peça.

"Mostre sua chaga"

Joseph Beuys
Joseph Beuys: 'Mostre sua chaga'Foto: AP

A mídia de língua alemã, que não raras vezes criticou acidamente trabalhos anteriores do diretor, aponta Uma igreja do medo do estranho dentro de mim como uma das melhores e mais densas produções de Schlingensief. "Exatamente essa falta de distância inaudita da encenação dá à peça a liberdade de adentrar incondicionalmente as profundezas do sofrimento", observa o diário suíço Neue Zürcher Zeitung.

Uma atitude que pode ser chamada de egocêntrica, exibicionista ou kitsch, mas que é difícil de ser criticada, segundo o FAZ, pois é "tocante, impressionante, autêntica, experimental e corajosa". Coragem essa que remete diretamente à obra Mostre sua chaga (Zeige deine Wunde) de Joseph Beuys (1921–1986). A instalação do artista é composta por um grande espaço asséptico, no qual se encontram vários objetos, entre eles macas para o transporte de cadáveres típicas dos departamentos de Patologia.

A obra de Beuys reflete sobre a doença, a terapia e a morte. Para o artista, uma ferida só pode ser curada quando é exposta. "É preciso revelar uma doença quando se quer curá-la", dizia Beuys, cuja trajetória foi absolutamente permeada pelo trauma da enfermidade durante a guerra.

Em 1944, ele saiu com vida de um combate aéreo na Criméia (Ucrânia), onde foi tratado durante vários dias por nativos da região. O chapéu de feltro que tanto caracterizou o artista era, na verdade, uma forma de cobrir um ferimento na cabeça em conseqüência deste acidente.

As "longas férias" de Van der Keuken

Johan van der Keuken Filmemacher und Fotograf Quelle: www.johanvanderkeuken.com
O holandês Johan van der Keuken: viagem cinematográfica em busca da curaFoto: www.johanvanderkeuken.com

Também no cinema há exemplos de diretores que levam à tela a doença e a morte como forma de reflexão sobre suas próprias enfermidades. Ao receber o diagnóstico de um câncer em outubro de 1998, o documentarista holandês Johan van der Keuken (1930–2001) iniciou o que viria a chamar de suas "longas férias". Acoplado de uma câmera, compôs uma espécie de crônica de seus passos pelo mundo em busca da cura.

Observador tradicional do destino alheio, Van der Keuken se voltou desta vez para sua própria biografia, embora a câmera subjetiva, quase lírica, tenha continuado pinçando detalhes do que ele encontrava pelo caminho.

Um ensaísta cujo trabalho se situa na fronteira entre a perspicácia de um Jean Rouch e a sutileza de um Abbas Kiarostami, Van der Keuken documentou sua luta contra a morte. Assim, suas Longas Férias (De grotie vakantie) se transformaram num road-air movie, na definição do próprio diretor, em que a busca da cura o levou à Índia, aos Estados Unidos e até ao Brasil.

O Sacrifício de Tarkovski

Andrej Tarkowski Regisseur Kalenderblatt
Andrei Tarkovski: na realidade e na ficçãoFoto: dpa

No cinema de ficção, um dos exemplos é Sacrifício (1985), de Andrei Tarkovski. No filme, o protagonista Alexander sofre de uma doença incurável. Atormentado, acaba por incendiar sua casa e abandonar a família. O papel deveria ser interpretado por Anatoli Solonitsyn – que havia assumido o Gorchakov, personagem principal de Nostalgia, filme anterior de Tarkovski). O ator, porém, não pôde participar das filmagens devido a um câncer de pulmão.

Em 1985, Tarkovski, ele próprio vítima de um câncer, escreveria: "Anatoli Solonitsyn morreu da mesma doença que mudou a vida de Alexander [o personagem] e hoje, anos mais tarde, fui eu também acometido". Exemplos de que o medo do estranho de Schlingensief já vem provocando, na história das artes, a construção de muitas "igrejas".