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"Os camaradas eram os nossos principais carrascos"

Manuel Vieira (Luanda)16 de maio de 2012

Francisco Pascoal (na foto), diz que "casou" com o MPLA, mas não recebeu nada depois de ter passado dois anos na prisão e ter casa confiscada e a mulher violada a segui ao 27 de maio de 1977.

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Francisco Pascoal, sobrevivente do 27 de maio de 1977
Francisco Pascoal, sobrevivente do 27 de maio de 1977Foto: DW

Francisco Pascoal é um dos sobreviventes do 27 de maio de 1977, dia que desencadeou a morte de dezenas de milhares de angolanos após a realização, em Luanda, de manifestações a favor de Nito Alves.

À época, este era ministro do Interior de Angola e dissidente do MPLA, o partido no poder até hoje. O movimento de Nito Alves e os seus seguidores foram acusados pelo então presidente Agostinho Neto de terem planejado um golpe de estado. Seguiu-se uma repressão brutal dos chamados "fracionistas".

Na época do massacre, Francisco Pascoal era o secretário provincial da UNTA, da União Nacional dos Trabalhadores Angolanos, na província de Cuando Cubango no leste de Angola. Pascoal também era militante do MPLA e um dos membros do partido perseguidos pela própria formação política.

Em entrevista à DW África em Luanda, Francisco Pascoal começou por responder o que, segundo a sua perspectiva, aconteceu no dia 27 de maio de 1977.

DW África: O que se passou, no seu ponto de vista, no 27 de maio?

Francisco Pascoal: Eu não aceito que houve qualquer tentativa de derrubar o camarada [Agostinho] Neto [ex-presidente de Angola], porque nós víamos o camarada Neto como o nosso Deus.

Nós víamos o camarada Neto como uma pessoa importantíssima. Portanto, era impossível alguém pensar que tinha que matar o camarada Neto.

O 27 de Maio [de 1977] só aconteceu porque, dias antes – ou, no mês de abril – começaram a aparecer as perseguições, os raptos, as prisões arbitrárias, e então culminou com o problema de suspenderem o Nito Alves e mais alguns membros que eram do Comité Central do MPLA [atual partido da situação em Angola]. E, naquela altura, você ser exonerado do Comité Central quer dizer que você perdeu a imunidade e que, a qualquer altura, você pode ser preso, você pode ser fuzilado. Então, tentou-se evitar que ele [Nito Alves] fosse fuzilado. As massas populares resolveram fazer uma manifestação pacífica para ver se o camarada Neto podia revogar o que tinha feito. Só que a população foi recebida com tiros. Mataram pessoas – então, essas pessoas tinham seus filhos nos quartéis. Quando [estes] viram que realmente estavam a ser mortos os seus pais, saíram para os defender.

DW África: O que se passou consigo nos dias depois do 27 de Maio?

FP: Bem, eu até não estava em Luanda. Eu tinha sido chamado urgentemente pelo camarada Lúcio Lara para levar algumas diretivas para o banco, porque eu era membro, secretário – naquela altura, se chamava delegado provincial – da UNTA [União Nacional dos Trabalhadores Angolanos]. Então, eu tinha que levar alguns documentos sobre a resolução da reunião que se realizou na cidadela, onde se poderia definir se realmente existe ou não existe fracionismo dentro do MPLA.

Às vezes fico assim a pensar que aquilo foi uma coisa feita. Por quê? Discutiu-se e achou que não existia fracionismo e que teria de se dar mais 30 dias ao camarada José Eduardo dos Santos – que é hoje o presidente da República – para fazer um relatório a dizer se existia ou não existia fracionismo.

DW África: Porque acha que o senhor foi perseguido?

FP: Eu acho que eu fui perseguido não porque estava envolvido – não. Eu digo com toda a franqueza. Eu fui perseguido porque eu tinha um certo nível de escolaridade. A principal coisa que eles queriam era exterminar todo indivíduo que tivesse conhecimento.

DW África: Quem eram os responsáveis por esta repressão?

FP: Os responsáveis foram muitos. Primeiro vamos começar pelo camarada Lúcio Lara [na altura secretário do Bureau Político do MPLA]. Eu fui delfim dele, gostava do camarada Lúcio Lara. Mas posso dizer que o camarada Lúcio Lara, ..., o camarada Iko Carreira [na altura ministro da Defesa], o camarada Rui Monteiro – os nossos camaradas com quem nós próprios convivíamos – eram os nossos principais carrascos.

Agostinho Neto, ex-presidente angolano, acusou Nito Alves e seguidores de tentativa de golpe de Estado
Agostinho Neto, ex-presidente angolano, acusou Nito Alves e seguidores de tentativa de golpe de EstadoFoto: picture-alliance/dpa

Eu fui preso no dia 2 de junho [de 1977] no Cuando Cubango, transportado no dia 8 de junho para Luanda, posto na direção política de Luanda – a direção política da Segurança do Estado. Durante toda a noite, eu vi apenas poucos negros. Eu vi o comissário político da DISA [polícia política angolana], eu vi um capitão do qual não conheço o cargo, mas [que estava] de azul; uma moça e dois moços que transportavam tantos cadáveres que eles matavam, como os que estavam feridos e outros que eram transferidos por São Paulo e outras cadeias. No entanto, todos os que estavam a fazer a pressão eram todos mestiços e brancos. Isso testemunhado por mim. Eu vi com os meus olhos.

Na mesma noite, quando venho para Luanda, eu vinha ainda cheio de "Não, eu sou um membro do comité provincial do partido, secretário provincial... não, ninguém vai me fazer mal. Chegarei em Luanda e serei defendido". Quando eu disse a ele que eu era delegado provincial, ele disse: "É você mesmo. Você nasceu onde?"; "Nasci em Malange", respondi. "É mesmo você que estou a procurar", disse ele. (Pausa)

DW África: Alguma vez recebeu alguma compensação ou ajuda depois do que passou no 27 de Maio?

FP: Eu não recebi nem os meus próprios salários. Até hoje, a minha guia de entrega e o meu processo individual está anexado no ficheiro da UNTA como um cheque branco. Eu não fui julgado, eu não fui condenado. Passei dois anos na prisão, porque fui preso duas vezes. No entanto, nunca recebi nada. Nem do MPLA – que, inclusive, receberam-me a casa. Destruíram o meu carro, violaram a mulher... E não recebi nada. Até hoje não tenho nada.

DW África: O que é preciso para que haja, de fato, uma reconciliação – não só internamente, no MPLA, mas também entre todos os angolanos?

FP: Esta é uma pergunta um bocado pesada. Para mim, até acho que não é pesada – mas para os camaradas do MPLA, eles não acham que somos pessoas, e não nos querem ver, também. Nós fizemos muitos esforços para que eles compreendessem o nosso sacrifício libertando esse país. Fizemos tudo para que eles tomassem o poder. Nós combatemos os colonialistas portugueses, combatemos contra a FNLA, nós colocamos o MPLA no poder.

O que ele nos faz é uma simples chantagem. Eu vou para o MPLA, faço um currículo, entrego ao MPLA, e o camarada Batalha de Angola diz-me que tinha ter um oficial que ele tinha para que eu fosse promovido.

Enquanto fazia a imagem – prometendo que eu seria brigadeiro – de repente ele levanta e diz: "Alguém chamou-me, tenho de tratar de ir vê-lo, apareça depois". Passaram-se cinco anos, ele não apareceu mais.

DW África: Qual é a sua patente atual?

FP: A minha patente atual é de major – mas de forma fictícia, porque quem recebe o meu salário é outra pessoa. Eu não recebo nada. Não tenho nenhuma pensão de sobrevivência. Não sei onde buscar. Estou assim como um indivíduo que nunca trabalhou. Tenho filhos para criar, tenho netos - mas enfim, anda-se.

Então, como vamos fazer uma reconciliação com o MPLA? Nós queríamos que o MPLA nos chamasse, que sentássemos para discutirmos o que se deu no 27 de Maio. Isso para que o que aconteceu não aconteça mais no futuro. Porque nós vamos embora, mas os nossos filhos vão ficar. Mas precisamos que os filhos saibam o que aconteceu de concreto, o que houve para haver esta divisão.

O presidente angolano José Eduardo dos Santos: "Nós o colocamos no poder"
O presidente angolano José Eduardo dos Santos: "Nós o colocamos no poder"Foto: dapd

O que houve para matarem-se 82 mil homens? O MPLA diz que "só matou 30 mil". Se matou 30 mil, é muito, não é pouco. No entanto, tem que esclarecer, dizer: "nós matamos por causa disso, os culpados foram fulanos", ou "vocês também falharam nisto e naquilo, por isso é que houve isto". Então aceitamos e discutimos o problema, nos damos as mãos, tudo passa para a História e tudo bem.

Mas, também, não é como eles pensam: chamar um grupo de indivíduos, acomodar-lhes – para cargos de deputado, não sei quê, não sei quanto e a situação fica assim. Eu prefiro morrer como estou de que ir por esse caminho. Nós não aceitamos o 27 de Maio, não aceitamos isso.

Nós queremos honrar os nossos mortos, nós somos bantos. Tem que haver um enterro digno daqueles que morreram. Tem que haver indemnização daqueles que vivem, porque temos não pobres, mas paupérrimos, desgraçados, nós temos homens que só estão metidos na bebedeira! Homens que pegaram nas suas armas para defender este país.

E sempre aguardamos o MPLA. Eu pago quotas porque sinto que sou do MPLA! Eu digo a toda a gente que eu casei com o MPLA. No entanto, eu não vou sair só assim. Só assim, não. Nós queremos uma comissão equitativa, vamos escolher um sítio onde vamos discutir – não na sede nacional do MPLA – e discutimos os problemas. Somos irmãos! Damos-nos as mãos e acabou o assunto, desde que eles aceitem as nossas reivindicações.

27 maio 1977 - Francisco Pascoal - sobrevivente - MP3-Mono

Membros e apoiantes do MPLA em 2008
Membros e apoiantes do MPLA em 2008Foto: picture-alliance/ dpa
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