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Doris Lessing foi escritora por paixão e ícone feminista à revelia

Helen Whittle (av)18 de novembro de 2013

Prêmio Nobel de Literatura 2007 morreu aos 94 anos em Londres. Muitos insistiam em vê-la como ícone feminista, mas a autora britânica se considerava uma contadora de histórias que acreditava no poder da palavra escrita.

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Foto: Jan Delden/AFP/Getty Images

Antissentimental, provocadora e avessa a concessões, a formidável obra literária de Doris Lessing entrelaça experiências vividas e história mundial, num comprometimento inflexível com a arte de narrar histórias.

Sob o nome Doris May Tayler, ela nasceu em 22 de outubro de 1919, em Kermanshah, Pérsia (atual Irã). Mais tarde, ela registraria que seus genitores haviam sido "muito massacrados" pela Primeira Guerra Mundial. O pai, oficial colonial britânico, quase fora morto por estilhaços de granada em 1917 e perdera uma perna. A mãe, enfermeira, o conhecera no hospital em Londres onde ele se recuperava da amputação.

Em 1925, a família mudou-se para a colônia britânica da Rodésia do Sul (hoje Zimbábue), na África, onde cultivava milho, sempre na luta pela subsistência. A futura autora teve uma infância infeliz: quando não estava brigando com a odiada mãe, estava fugindo dela. E desprezava a sociedade que a cercava, considerando-a fria, desumana e provinciana.

Casamentos fracassados

Imersa nos livros que recebia de um clube de leitura londrino, Doris abandonou a escola aos 14 anos de idade, mudando-se para a capital sul-rodesiana Salisbury (hoje Harare), para trabalhar como telefonista.

Cinco anos mais tarde, casou-se com Frank Wisdom, com quem teve dois filhos, John e Jean, antes de se divorciar em 1943. Mais tarde a escritora descreveria assim essa fase de sua vida: "Não há tédio maior do que o de uma mulher inteligente que passa todo o dia com um bebê."

Influenciada pelos imigrantes europeus em Salisbury – entre os quais, diversos intelectuais judeus em fuga da perseguição nazista –, ela despertou para os temas políticos. No círculo literário Left Book Club, de inspiração comunista, conheceu Gottfried Lessing, um refugiado da Alemanha. Em 1945, casaram-se; dois anos mais tarde nascia o filho Peter.

Schriftstellerin Doris Lessing
A autora em Paris, 1976, após receber o Prix MédicisFoto: AFP/Getty Images

Depois que também esse matrimônio fracassou, Doris entregou as duas crianças do primeiro casamento ao pai e sua segunda esposa, mudando-se com o terceiro filho para a Inglaterra. Na bagagem, além de uma ampla biblioteca, levava o manuscrito de seu primeiro romance, The grass is singing (literalmente: A grama está cantando). Pelo resto da vida ela seria questionada pela decisão de deixar John e Jean na África.

Prêmios e engajamento de esquerda

Apesar do duro início no país novo, como mãe separada e sem formação superior, em breve Doris Lessing se tornou uma das mais importantes representantes da literatura britânica do pós-Guerra. Publicado em 1950, num prazo de apenas cinco meses seu livro de estreia recebeu várias edições.

O tema de The grass is singing são as difíceis relações entre brancos e negros na então Rodésia do Sul. No romance parcialmente autobiográfico, a escritora associa experiências de sua própria infância à crítica social mordaz das injustiças coloniais "daquela sociedadezinha muito feia e maldosa".

Após esse primeiro sucesso, Lessing passou a pagar uma família para cuidar de Peter, por longos períodos, a fim de ter mais tempo para escrever. Em 1953, ela ganhou o Prêmio Somerset Maugham, o primeiro de uma longa série de distinções e honrarias, por Five Short Novels.

Nos meios da intelectualidade de esquerda que frequentava, Doris Lessing travou contato com John Berger, John Osborne e Bertrand Russell. Ela aderiu ativamente às campanhas pelo desarmamento nuclear e contra o regime de apartheid na África do Sul. Devido a seu posicionamento político, durante décadas esteve proibida de viajar para a África do Sul e a Rodésia.

Schriftstellerin Doris Lessing Frankfurter Buchmesse 2007
Homenageada na Feira do Livro de Frankfurt, 2007Foto: picture-alliance/dpa

Ícone feminista à revelia

Sempre priorizando sua escrita, Doris Lessing transformou-se em ícone feminista sem querer sê-lo com a publicação de The Golden Notebook (O caderno de notas dourado), em 1962. O romance, que aborda temáticas como feminismo e maternidade, conta em ordem não cronológica a história da autora Anna Wulf, a qual procura reunir diferentes aspectos da própria vida em quatro cadernos de notas.

Aqui, Lessing experimenta com a forma de narrativa clássica e provoca, ao descrever abertamente tanto fenômenos como menstruação e orgasmo quanto a tensão entre a vida materna e a vida erótica.

Quando a obra foi elevada à categoria de manifesto feminista, a autora disse que essa nunca havia sido sua intenção: "Então eu virei um 'ícone feminista'. Mas o que eu disse, realmente, em The Golden Notebook? Que todo tipo de ideia fixa, tacanhez, obsessão leva necessariamente à desordem mental, senão à loucura."

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Doris Lessing no jardim de sua casa em Londres, após receber Prêmio Nobel 2007Foto: Shaun Curry/AFP/Getty Images

Poder da palavra escrita

Em 2007, a autora foi laureada com o Prêmio Nobel da Literatura. Ao ser informada da premiação, quando saltava de um táxi diante de casa, em Londres, seu comentário foi "Oh, Cristo!", seguido de um gemido. Mais tarde, Lessing reclamaria que essa honra lhe roubava tempo para escrever, pois agora estava constantemente ocupada em dar autógrafos e falar com jornalistas.

Em sua última publicação, Alfred and Emily, de 2008, a autora retorna à infância na Rodésia do Sul. A primeira parte é um conto breve, mostrando como a vida de seus pais poderia ter transcorrido se ambos não tivessem fugido dos horrores da Primeira Guerra. A segunda parte é uma biografia de Alfred e Emily Tayler.

A escritora britânica rejeitava toda forma de sentimentalismo, defendia o "pensamento não linear" e jamais se curvou diante de convenções e expectativas alheias. Ao morrer neste domingo (17/11), aos 94 anos de idade na capital inglesa, ela deixou romances, peças teatrais, poemas, biografias, artigos e ensaios. Em primeira linha, Doris Lessing sempre se considerou uma contadora de histórias, e acreditava inabalavelmente no poder da palavra escrita.