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De Bochum à Cidade do Cabo

4 de fevereiro de 2013

De navio rumo a um novo mundo: para a menina Miriam, de 13 anos, o ano de 1937 foi uma aventura. Mas também na África do Sul havia racismo: as vítimas ali eram os negros.

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Foto: DW/L.Schadomsky

"9 de outubro de 1936. E assim estou sentado no belo vapor Stuttgart e finalmente encontro tempo e tranquilidade para ordenar meus pensamentos e entender se tive razão em romper todas as ligações – que eu mantinha de maneira tão conservadora e que me eram tão caras – para entregar o meu futuro e o de minha família a um destino ainda tão desconhecido. Aconteceu. O que será daqui pra frente?"

.Ao ler estas linhas, a mudança na voz de Miriam Kleineibst é visível. Serão os esforços para tentar decifrar as letras em alemão antigo no papel de carta amarelado? Ou serão mesmo as emoções ao reler a carta escrita por seu pai à família que ficou em Bochum, quando se encontrava a bordo do navio Stuttgart, a caminho da África?

Miriam Kleineibst, que na época tinha 13 anos, vive hoje no Lar de Idosos Good Hope Park – literalmente Parque da Boa Esperança. Da sala de estar, ela tem vista para o Oceano Atlântico, cujas ondas batem nos recifes de Green Point, que forma, ao lado de Sea Point, o bairro judeu da Cidade do Cabo. Aqui vivem judeus que emigraram da Lituânia, Rússia e Alemanha, bem como seus descendentes. No bairro há açougues e padarias kosher, escolas judaicas e sinagogas.

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75 anos depois de deixar a Alemanha: Miriam Kleineibst no porto da Cidade do CaboFoto: DW/L.Schadomsky

Despertar abrupto

Em Bochum, os pais de Miriam Kleineibst tinham uma fábrica de sapatos e podiam empregar uma babá para cuidar dela e de seu irmão mais velho, Klaus. A comunidade judaica de Bochum era liberal, mas a família cultivava tradições. Respeitava-se os preceitos religiosos na cozinha e às sextas e sábados os membros da família, de sobrenome Samson, iam juntos à sinagoga.

A tomada de poder pelos nazistas, em 1933, poria fim a uma infância tranquila. A partir de setembro daquele ano, Miriam e suas amigas só podiam sair às ruas quando estivessem pelo menos três meninas juntas. Elas eram perseguidas por membros agressivos da Juventude Hitlerista, que chegaram a incitar um cachorro a atacá-las. Ao cinema os judeus tampouco podiam ir. O pai de Miriam foi obrigado a entregar sua oficina. E, em 1934, a família resolveu enviar a filha para passar uma temporada junto de uma família de judeus na Holanda.

Cabo da última esperança

Naquela época, cada vez mais países fechavam suas fronteiras para os judeus alemães, entre eles a Austrália, o Canadá, os EUA e nações sul-americanas, cujas cotas de imigrantes estavam (supostamente) esgotadas. Mas enquanto o "delírio ariano" na Alemanha nazista ganhava proporções cada vez maiores, os judeus alemães eram vistos pelos políticos da África do Sul como "bons imigrantes". Somente no ano de 1936 chegaram ao país 2,5 mil judeus vindos da Alemanha.

Mas mesmo assim correntes antissemitas no país forçaram a criação de uma cota migratória, o que fez com que a família Samson tivesse que correr com os papéis para sair da Alemanha. No dia 8 de outubro de 1936, Moritz Samson deixava o país a bordo do navio Stuttgart, em companhia de 570 outros judeus. A família permaneceu a princípio em Bochum, para embarcar depois num outro vapor que saiu da Itália rumo à África do Sul.  Neste ínterim, sua mãe aprendeu rapidamente a costurar, a fim de poder trabalhar no novo país. Em janeiro de 1937, Miriam, o irmão, Klaus, e a mãe embarcavam, enfim, no navio Duilio, em Gênova.

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Miriam com sua mãe e irmão no vapor que os levou à África do SulFoto: DW/L.Schadomsky

Para a menina de 13 anos, a fuga da Alemanha nazista foi uma aventura. "Eu nunca tinha viajado antes num navio grande, para mim era tudo muito interessante", recorda ela hoje. Enquanto sua mãe tentava fazer com que tudo parecesse o mais normal possível, o medo era onipresente. Sua avó afirmou ao se despedir: "Nós nunca mais nos veremos",  lembra Miriam.

Os primeiros anos

A ambientação ao novo lugar se deu rapidamente. Já no dia seguinte à chegada, Miriam recebeu visitas das crianças da vizinhança. E seus pais adotaram já de início o inglês em casa, a fim de facilitar a integração. O que torna mais surpreendente o fato de Miriam, 75 anos mais tarde, ainda dominar perfeitamente e sem qualquer sotaque o alemão.

Mas os primeiros meses foram difíceis. Com o pai ainda desempregado, era a mãe quem garantia o sustento da família. A comunidade judaica também ajudava – naquele momento, havia 6 mil judeus alemães na Cidade do Cabo. Miriam acabou saindo da escola dois anos mais tarde, a fim de trabalhar numa confecção de chapéus. A África do Sul declarou guerra aos países do Eixo. O então futuro marido de Miriam e seu irmão, Klaus, alistaram-se voluntariamente para lutar contra a Alemanha de Hitler.

Foi quando chegou o fatídico ano de 1948. O Partido Nacional ganhou as eleições na África do Sul e decretou no país as leis de segregação racial. Para Miriam, era uma espécie de déjà-vu: os bancos nos parques tinham placas que lembravam 1935 em Bochum, só que no lugar de "judeus" lia-se ali "não-brancos". Era retirado das pessoas o direito de se sentarem em praça pública.

O apartheid no dia a dia

E como reagiram os judeus alemães, que tinham acabado de escapar de uma perseguição racista? "Estávamos muito ocupados conosco. Era um tempo difícil. As crianças eram pequenas, meu marido passou muito tempo doente", lembra Miriam. E no mundo protegido dos subúrbios da Cidade do Cabo sentia-se pouco, até hoje inclusive, da pobreza opressora das townships da metrópole.

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Bairro judaico da Cidade do CaboFoto: DW/L.Schadomsky

Na casa dos Samson não se falava de política. Em determinado momento, eles se mudaram para um bairro "de raças misturadas", o famoso District Six, onde durante décadas viveram brancos e negros, judeus e muçulmanos, em convivência pacífica. De súbito, porém, negros e descendentes de hindus foram sendo confinados a enclaves e tiveram suas casas destruídas.

Para Ronnie, o filho mais velho de Miriam, o apartheid ainda é um assunto importante. Ronni vê a si próprio como "um judeu sul-africano de origem alemã". Ele lembra que "a primeira geração de judeus alemães não encontrou na África do Sul um governo que fosse idêntico ao que eles tinham acabado de deixar para trás, mas que representava posturas semelhantes e dispunha de uma polícia muito agressiva", diz.

Política: dar-se ao luxo de lutar

No Templo Israel, o rabino Richard Newmann é responsável pela comunidade judaica de Green Point. Ele cresceu em Berlim e emigrou com a família para o Reino Unido, tendo trabalhado depois em Israel, EUA e na Alemanha. Há cinco anos, ele vive na Cidade do Cabo.

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O rabino Richard NewmannFoto: DW/L.Schadomsky

Como todos os rabinos na África do Sul, ele se vê frente à difícil tarefa de dar assistência tanto a judeus ortodoxos conservadores, quanto aos liberais. O shabat aos sábados costuma contar com 250 fiéis que frequentam a imponente sinagoga.

"Os efeitos do Holocausto e da Segunda Guerra sobre os judeus alemães que emigraram para África do Sul foram tamanhos que eles estavam esgotados emocionalmente para participaram de atividades políticas", diz Newman.

Ele se lembra do próprio pai, que fugiu da Alemanha: "Depois de tudo, ele ficou destruído emocionalmente". Quando os refugiados chegaram à África do Sul, eles tinham muitos problemas e não tinham tempo nem forças "de se darem ao luxo de fazer oposição ao governo", completa Newmann.

Richard Freedman, diretor do Centro de Estudos sobre o Holocausto da Cidade do Cabo, vê a situação de maneira semelhante: "Acredito ser injusto perguntar aos sobreviventes do Holocausto: Se você já sofreu na pele isso tudo, como pode ter permitido que acontecesse aqui de novo? O apartheid os transtornava, mas eles estavam ocupados em reconstruir suas próprias vidas, criar uma família, casar, achar emprego, enfim, curar as feridas. E alguns deles se tornaram inclusive ativistas – o que é surpreendente. Mas não se podia esperar de todos isso", conclui Freedman.

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Miriam com o filho Ronnie nos jardins do Centro do Holocausto, na Cidade do CaboFoto: DW/L.Schadomsky

Herança e identidade

Em Riebeek-Kasteel, a uma hora de carro da Cidade do Cabo, vive Michael, o segundo filho de Miriam. Ele é casado com uma sul-africana protestante, que fala africâner. Mas as tradições judaicas ainda se mantêm presentes na vida dos filhos. "Ser judeu é parte deles, mas não é uma parte dominante", diz Michael. "Eles tendem mais para o cristianismo. Meu filho, por exemplo, é um cristão confesso, mas mesmo assim ele celebra duas vezes por ano conosco os grandes feriados judaicos. Deixei totalmente a cargo deles a decisão do quanto prosseguir com a tradição judaica", resume o pai.

Para Miriam, o que importa "não é ostentar o judaísmo. Festejamos a festa de Pessach, o Ano Novo Judaico e os outros feriados com toda a família. Isso é importante para mim. E o mais importante é quando as pessoas fazem algo de bom", diz ela. "Nunca foi fácil, mas foi sempre bom", conclui.

Autor: Ludger Schadomsky (sv)
Revisão: Roselaine Wandscheer