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Crise volta a assombrar argentinos

Marc Koch (msb)25 de julho de 2014

Treze anos depois do colapso econômico que jogou famílias inteiras de classe média na pobreza, Argentina enfrenta novamente a possibilidade de dar um calote em credores internacionais. Instabilidade se reflete nas ruas.

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Foto: picture-alliance/dpa

Quando a noite cai em Buenos Aires e outras grandes cidades argentinas, é a hora de os chamados cartoneros entrarem em ação. Eles catam todo tipo de papel e papelão, dobram com cuidado e fazem pilhas em cima dos seus pesados carrinhos de mão.

Após horas de trabalho árduo, descarregam seus carrinhos abarrotados em caminhões de grandes empresas. Pelo trabalho exaustivo, recebem 6 pesos argentinos (cerca de 1,70 real) para cada 10 quilos de papel.

A proliferação de cartoneros é sintomática do momento econômico argentino. Eles catam não só papel, mas também vidro e plástico. Começaram a surgir em 2002, no auge da crise que levou ao calote da dívida externa pública e jogou, de um dia para outro, famílias inteiras de classe média na pobreza.

Muitos argentinos começaram, então, a coletar e vender lixo reciclável – e viraram símbolo do colapso da economia. Agora, 13 anos depois, a crise volta a assombrar a população. A ruína bate à porta mais uma vez.

Diferenças entre 2002 e 2014

As condições desta vez, porém, são diferentes da década passada, quando as obrigações eram quase impagáveis. Nos últimos anos, a dívida vem se mantendo abaixo dos 50% dos PIB, o que é perfeitamente administrável.

Em 2014, o que ameaça a capacidade de pagamento é uma dura guerra com os hedge funds – também chamados de fundos multimercados e fundos abutres. O problema de hoje tem suas raízes em 2005, quando o governo Nestor Kirchner negociou as dívidas herdadas da crise anterior.

Dos credores, 90% aceitaram. Mas ações judiciais dos fundos que rejeitaram negociar o pagamento colocaram a Argentina contra a parede. Um tribunal americano condenou a Argentina a pagar esses fundos integralmente, valor que chega a 1,3 bilhão de dólares.

Mas o problema não está em quitar essa dívida, mas sim no que pode acontecer caso Buenos Aires o faça. Outros credores antigos que concordaram em abrir mão de parte de boa parte do dinheiro a que teriam direito poderiam, agora, reivindicar que também querem receber a dívida na íntegra.

Armut in Buenos Aires "Cartoneros"
'Cartoneros' recebem menos de 2 reais para cada 10 kg de lixo reciclável que coletaremFoto: picture-alliance/dpa

Isso, sim, colocaria a economia argentina na berlinda: trata-se de 120 bilhões de dólares, o que quebraria novamente os cofres do país.

Tempo correndo

Os efeitos da disputa entre os fundos e as autoridades argentinas podem ser fatais. "É diferente do que aconteceu em 2001. Desta vez, não haverá uma frenética recessão. Os efeitos só serão sentidos depois de algum tempo", explica Fausto Spotorno, analista econômico da OJF & Asociados.

As bases para esses efeitos vêm sendo alimentadas há anos. Desde 2011 a economia não cresce mais: ela vem sendo estrangulada pelo controle cambial e pela regulação de importações. O governo não consegue controlar a inflação, mas conquista o voto de seus eleitores com gastos públicos altos.

Esse círculo vicioso passa a girar ainda mais rápido depois de uma falência pública, afirma Luis Palma Cané, da consultoria econômica Fimades: "Menos dólares serão enviados ao país. Então vamos perceber que por aqui praticamente não existe segurança jurídica, o que vai nos isolar ainda mais do resto do mundo. Com isso, vamos importar cada vez menos bens e produtos primários, o que por sua vez vai gerar impactos negativos na produção industrial e, consequentemente, no PIB."

Teoria da conspiração

No entanto, em vez de iniciar as aguardadas reformas, a presidente Cristina Kirchner prefere intimidar supostos inimigos externos, que segundo ela estariam ameaçando a soberania e o desenvolvimento social da Argentina. Atualmente, os gerentes de "fundos abutres", como ela faz questão de chamá-los, são o inimigo número um do Estado.

A fim de preservar essa visão de mundo, a Casa Rosada não hesita em fazer uso de estatísticas baseadas em dados questionáveis. Segundo números oficiais, índices de inflação e de pobreza, por exemplo, estariam bem abaixo dos percentuais calculados por analistas independentes.

O governo culpa pelo permanente aumento de preços os donos de redes de supermercados e produtores, que estariam manipulando as colheitas intencionalmente, sempre querendo ganhar mais.

Cristina Fernandez de Kirchner beim BRICS UNASUR Treffen in Brasilia 16.07.2014
Presidente culpa "fundos abutres"Foto: Reuters

Contra isso será dada a largada a uma campanha pública intitulada Precios Cuidados. Por meio de decretos, os preços de alguns produtos serão congelados, e as lojas de alimentos, monitoradas pela juventude partidária. Mas apenas os consumidores poderão perceber se produtos congelados estiverem indisponíveis com mais freqüência e as alternativas estiverem mais caras a cada semana.

Confiança perdida

Ao mesmo tempo, a produção industrial só encolhe. Quase ninguém mais tem dinheiro para comprar um carro. Com isso, fabricantes demitem funcionários, já que não há mais trabalho para todos. Mas os desempregados são apoiados pelo governo – afinal, nas próximas eleições eles precisam votar em seus agora benfeitores.

Investidores estão cautelosos, sobretudo os estrangeiros. "O problema é que a Argentina não se comportou nos últimos anos como um devedor confiável, em que se possa acreditar. Como isso não aconteceu no passado, agora se questiona até que ponto se pode confiar no país", explica Spotorno.

E em vez de tentar reconstruir um novo caminho de confiança, o governo prefere se autovangloriar. Cristina chama os dez anos de kirchnerismo de "década vencida". Pois, com a linha da pobreza fixada oficialmente em 1.780 pesos (490 reais), uma família de cartoneros de quatro pessoas, com uma renda familiar de 4.800 pesos (cerca de 1.300 reais), é considerada classe média.