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Coreógrafa questiona percepção de genênero pela sociedade

Marco Sanchez27 de agosto de 2014

Em cartaz em Salvador, espetáculo "Reproduction", da coreógrafa húngara Eszter Salamon, reflete sobre a sexualidade, o papel do público e, principalmente, o poder.

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Foto: divulgação

Uma tentativa de derrubar barreiras – essa talvez seja a melhor maneira de definir Reproduction, que tem duas únicas apresentações (28 e 29/08) no Instituto Feminino da Bahia, em Salvador.

O espetáculo da coreógrafa húngara baseada em Berlim Eszter Salamon tem como ponto principal o questionamento do papel histórico das bailarinas na dança. Ao discutir barreiras de gêneros, a artista também questiona a sexualidade, o papel do público e, principalmente, o poder.

"A coreografia mostra de uma forma delicadamente provocadora as demarcações do olhar. Esse trabalho abre espaço para uma reflexão sobre como nós constituímos corpos apenas por percebê-los de uma certa maneira. Ao assistir a cenas de intimidade, de toque, de amor, o voyeur [público] desfigura as fronteiras que nos habituamos a ver", explica a coreógrafa.

Originalmente concebida em 2004, a peçafoi remontada como parte do encontro anual de artes IC8 (Interação e Conectividade) e conta com oito bailarinas brasileiras, que brincam com o papel de gênero e criam movimentos masculinos e femininos inesperados e inspirados em Kama Sutra.

Negociação de poder

Salamon já esteve no Brasil em 2011, quando participou de uma residência em Curitiba e apresentou espetáculos em importantes festivais de dança contemporânea, como o Festival Internacional de São Paulo e o Panorama no Rio de Janeiro.

Ao jogar com aspectos biológicos e sociais de gênero, ela questiona a percepção de masculino e feminino e evidencia o quão ficcional é o conceito de identidade. O material bruto de Reproduction – seus movimentos – são inspirados na erotização e na sexualidade.

"Basicamente, o espetáculo é uma negociação de poder entre as bailarinas e a plateia. A expressões são repetidas, mas de maneiras e em situações diferentes. A parte mais importante é o questionamento do gênero dentro da dança contemporânea, basicamente questionando o dueto, que é uma das formas mais básicas da dança", diz a artista.

O dueto de Salamon é um retrato de um casal heterossexual, representado de uma maneira normativa, não só na dança, como também no Kama Sutra, uma das maiores inspirações para os movimentos do espetáculo.

As bailarinas no palco vão constantemente mudando de personagens e papéis. "Elas se comportam de uma maneira fluida e constroem personagens diferentes, criando ângulos com os quais o público pode se relacionar", completa.

"As posições chamadas de masculina e femininas vão se alternando durante a performance. Apesar de essa mudança ser constante, a maquiagem e os figurinos são divididos nas duas partes. Sobre a fantasia de homem, elas colocam elementos femininos, o que cria uma espécie de hermafrodita. Elas empilham para criar algo novo", explica.

Mesmo no criativo e aberto mundo da dança contemporânea, esses papéis parecem ser fixos, claros e definidos. A coreógrafa cita artistas, como Pina Bausch e Wim Vanderkeys, que, mesmo com trabalhos de vanguarda, ainda assim criam, ou criavam, performances construídas em cima de normas e papéis definidos.

Brasilien Deutschland Theater Tanzchoreographie Reproduction
Ao assistir a cenas de intimidade, o público, como voyeur, desfigura as fronteiras que está habituado a verFoto: divulgação

Novas questões

Concebido em Berlim, Reproduction foi encenado também em Beirute, no Líbano, onde a coreógrafa recebeu o convite para a montagem em Salvador. "Geralmente eu não retomo trabalhos antigos em outras partes do mundo. Mas foi uma experiência muito interessante. Fiquei feliz por fazer esse trabalho aqui no Brasil", conta.

Com diferentes camadas, ângulos e perspectiva para temas tão amplos como gênero, poder e a visão normativa do papel da mulher, o espetáculo alimenta um debate que, no Brasil, ganhou novos contornos. O questionamento do corpo universal masculino e branco trouxe à tona não só a submissão e o machismo na sociedade brasileira, como também evidenciou questões raciais.

"A maneira como essas bailarinas lidam com a vida e com seu próprio trabalho traz diferentes perspectivas da representação do corpo feminino e da mulher negra. Assim, a maneira como o assunto é abordado aqui é diferente. Queria trabalhar esses diferentes aspectos e questionar como eles se relacionam em um espaço público [palco], o que é diferente na sociedade brasileira ou libanesa", diz a coreógrafa.

Outra diferença é a maneira como a cultura brasileira brinca com o corpo e a sexualidade, o que se reflete na montagem, evidenciando a contradição entre um ambiente extremamente sexualizado e a repressão. O mesmo ocorre com o racismo implícito, questionado na exposição dos corpos negros.

"Acho interessante ver como o espetáculo ainda é interessante. Em certos lugares, essa discussão pode ser mais atual, mas, mesmo no contexto europeu, o ângulo pode ser diferente, e esses questionamentos ainda são relevantes. Quando criei essa peça, fui questionada, como mulher heterossexual, por criar um espetáculo com esse tipo de proposta. Eu entendi que as pessoas ainda têm diferentes problemas em relação ao gênero também na Europa", diz Salamon.